2º Desabafo - 10 de Outubro de 2006
Enquanto vereador responsável pelo Pelouro da Educação, dou por mim a programar os prolongamentos de horários dos catraios. Para os ouvintes mais distraídos e aqueles que não tenham tido ainda a alegria de serem pais e andarem metidos nestas andanças, a coisa resume-se a isto: o Governo, que tem mais com que se preocupar, passou a bola do 1º ciclo, que para mim será sempre a escola primária, para as autarquias. Fecha-se assim os olhos a uma óbvia obrigação estatal de enturmar os petizes no mundo da escolaridade, ao mesmo tempo que se liberta de uma importante carga de trabalho e responsabilidade.
Pois bem, agora os meninos não saem às 15. Agora, depois da meia tarde e até às 17.30, têm as suas vidinhas ocupadas com prolongamentos onde, para além de actividades de carácter obrigatório como o Inglês para o 3º e 4º ano e o apoio ao estudo, existem outras matérias que os municípios entendam como enriquecedoras e adaptadas aos seus mais jovens descendentes. O dinheirito para assegurar os docentes, chega via Ministério da Educação, após realização de formal candidatura e depois são as câmaras ou outra entidade que se perfile e reúna os requisitos, a escolher o quê e como. O leque de áreas é tão diversificado que pode ir da Robótica ao Espanhol. Nós, em Marvão e por convicção, optámos pelo Inglês logo desde a 1ª classe, a Actividade Física e Desportiva, a Música, a Expressão Plástica e a Animação.
Mas a coisa não fica por aqui. Para além de tudo isto e porque os pais querem, os filhos sonham e a obra nasce, há também agora, em regime extra-curricular e depois das 18 horas: o Ballet, o Hip-hop e o Judo, a Escola de Música e o Futebol do Grupo Desportivo Arenense. Muito por onde escolher que isto de viver no interior não pode ser sinónimo de um viver inferior.
Sentado a olhar para o horário, cada actividade com sua cor, tudo programado ao milímetro para que quem queira mesmo alinhar em tudo não tenha que deixar alguma para trás, dou por mim a pensar se a coisa fará sentido.
Recordo então como era no meu tempo. E lembro com saudade como eram longos aqueles minutos antes do bater das 3, em que se escancaravam as portas da escola para nos revelar um mundo inteiro de brincadeira à nossa espera, até que se fizesse noite. Essa legião de incautos rebeldes em ponto pequeno, corria então em liberdade, a explorar um mundo que se reinventava dia-a-dia. Não havia cancho ou buraco que não conhecêssemos como a palma das nossas mãos. Era o tempo dos esconderijos em que sonhávamos com os cinco e os sete, as naves espaciais e os cóbois dos filmes da tv espanhola onde brilhava esse ser supremo chamado John Wayne, um tempo que a televisão era um luxo e não um mal necessário. Nesse horário mágico entre as 3 e as 7 ou 8 ou meia-noite até, em que nos esquecíamos de protocolos e refeições, éramos espiões e exploradores, homens da idade da pedra e indígenas da Amazónia, o Sandokan, o Arzowei ou o Tarzan, o Marco, a Heidi e o Wickie, ladrões de pêras e tangerinas, sempre de fisga no bolso e com mais uma esparrela por armar. Mas haveria alguém nesse mundo que não fosse capaz de fazer uma barraca com 3 tábuas, meia dúzia de pregos ferrugentos e um resto de chapa de zinco?
Nesse consentido espaço à rebeldia, nessa Terra-do-Nunca em que o nosso Capitão Gancho, o nosso único medo era o comboio, aprendemos o que era o companheirismo e a amizade. Tenho a sorte de conviver quase diariamente com muitos desses meus amigos de infância. Sou colega de trabalho de alguns. A vida quis assim e sinto-me afortunado por assim ser. Vivemos tanto perigo e tanta aventura, descobrimos tanto juntos que sabemos todos que por mais voltas que o mundo dê, haveremos sempre de estar lá, uns pelos outros. Porque nessa gruta do alto da Beirã fumamos convictos o primeiro cigarro, um Kentuky mal amanhado comprado pelos mais velhos na tasca da Ti Aurora; na Broca, partilhámos o tanque com vacas e bezerros, nessas tórridas tardes de Verão e esse dia não era dia se não fossemos todos às melancias. Expostos, por nossa conta, mas com uma alegria transbordante a fervilhar nos corpos franzinos.
Acredito piamente que é na infância que reside a centelha de divindade que há em todos nós. Acredito que no fundo, é o único período da nossa vida em que somos verdadeiramente livres de horários, contas e obrigações. É o momento em podemos fazer como dizem os espanhóis, lo que me der la gana. Porque a partir daí, a corrermos uns contra os outros e contra o tempo e o que ficar para trás, que feche a porta que dos fracos não reza a história.
E assim, com uma diferença de vinte e poucos anos, sigo para a escola de mão dada com o meu tesouro, a minha Leonor, sabendo que a entrego e preparo para um mundo que já nada tem a ver com o meu de então.
Serão mais cultos, mais pragmáticos, mais sofisticados, mais organizados, em suma, mais preparados.
Mas será que são mais felizes?
Será mesmo por aqui o caminho?
Pois bem, agora os meninos não saem às 15. Agora, depois da meia tarde e até às 17.30, têm as suas vidinhas ocupadas com prolongamentos onde, para além de actividades de carácter obrigatório como o Inglês para o 3º e 4º ano e o apoio ao estudo, existem outras matérias que os municípios entendam como enriquecedoras e adaptadas aos seus mais jovens descendentes. O dinheirito para assegurar os docentes, chega via Ministério da Educação, após realização de formal candidatura e depois são as câmaras ou outra entidade que se perfile e reúna os requisitos, a escolher o quê e como. O leque de áreas é tão diversificado que pode ir da Robótica ao Espanhol. Nós, em Marvão e por convicção, optámos pelo Inglês logo desde a 1ª classe, a Actividade Física e Desportiva, a Música, a Expressão Plástica e a Animação.
Mas a coisa não fica por aqui. Para além de tudo isto e porque os pais querem, os filhos sonham e a obra nasce, há também agora, em regime extra-curricular e depois das 18 horas: o Ballet, o Hip-hop e o Judo, a Escola de Música e o Futebol do Grupo Desportivo Arenense. Muito por onde escolher que isto de viver no interior não pode ser sinónimo de um viver inferior.
Sentado a olhar para o horário, cada actividade com sua cor, tudo programado ao milímetro para que quem queira mesmo alinhar em tudo não tenha que deixar alguma para trás, dou por mim a pensar se a coisa fará sentido.
Recordo então como era no meu tempo. E lembro com saudade como eram longos aqueles minutos antes do bater das 3, em que se escancaravam as portas da escola para nos revelar um mundo inteiro de brincadeira à nossa espera, até que se fizesse noite. Essa legião de incautos rebeldes em ponto pequeno, corria então em liberdade, a explorar um mundo que se reinventava dia-a-dia. Não havia cancho ou buraco que não conhecêssemos como a palma das nossas mãos. Era o tempo dos esconderijos em que sonhávamos com os cinco e os sete, as naves espaciais e os cóbois dos filmes da tv espanhola onde brilhava esse ser supremo chamado John Wayne, um tempo que a televisão era um luxo e não um mal necessário. Nesse horário mágico entre as 3 e as 7 ou 8 ou meia-noite até, em que nos esquecíamos de protocolos e refeições, éramos espiões e exploradores, homens da idade da pedra e indígenas da Amazónia, o Sandokan, o Arzowei ou o Tarzan, o Marco, a Heidi e o Wickie, ladrões de pêras e tangerinas, sempre de fisga no bolso e com mais uma esparrela por armar. Mas haveria alguém nesse mundo que não fosse capaz de fazer uma barraca com 3 tábuas, meia dúzia de pregos ferrugentos e um resto de chapa de zinco?
Nesse consentido espaço à rebeldia, nessa Terra-do-Nunca em que o nosso Capitão Gancho, o nosso único medo era o comboio, aprendemos o que era o companheirismo e a amizade. Tenho a sorte de conviver quase diariamente com muitos desses meus amigos de infância. Sou colega de trabalho de alguns. A vida quis assim e sinto-me afortunado por assim ser. Vivemos tanto perigo e tanta aventura, descobrimos tanto juntos que sabemos todos que por mais voltas que o mundo dê, haveremos sempre de estar lá, uns pelos outros. Porque nessa gruta do alto da Beirã fumamos convictos o primeiro cigarro, um Kentuky mal amanhado comprado pelos mais velhos na tasca da Ti Aurora; na Broca, partilhámos o tanque com vacas e bezerros, nessas tórridas tardes de Verão e esse dia não era dia se não fossemos todos às melancias. Expostos, por nossa conta, mas com uma alegria transbordante a fervilhar nos corpos franzinos.
Acredito piamente que é na infância que reside a centelha de divindade que há em todos nós. Acredito que no fundo, é o único período da nossa vida em que somos verdadeiramente livres de horários, contas e obrigações. É o momento em podemos fazer como dizem os espanhóis, lo que me der la gana. Porque a partir daí, a corrermos uns contra os outros e contra o tempo e o que ficar para trás, que feche a porta que dos fracos não reza a história.
E assim, com uma diferença de vinte e poucos anos, sigo para a escola de mão dada com o meu tesouro, a minha Leonor, sabendo que a entrego e preparo para um mundo que já nada tem a ver com o meu de então.
Serão mais cultos, mais pragmáticos, mais sofisticados, mais organizados, em suma, mais preparados.
Mas será que são mais felizes?
Será mesmo por aqui o caminho?
1 Comments:
Há pouco tempo recebi um e-mail onde se falava das diferenças entre gerações, as diferenças entre os meninos que brincavam na rua, com pouco mas livres, e os meninos que têm tudo, desde bens materiais ao acesso a mil e uma actividade extra-curriculares, que muitas das vezes, não são mais do que soluções fabricadas (agora surpreendentemente, pelas autarquias), para a falta de tempo dos pais.
Quando temos recordações felizes da nossa infância, é fácil olharmos para trás cheios de romantismo, isto é, com aquela sensação de que no nosso tempo é que era bom, naquele tempo a vida que levávamos fez-nos ganhar experiência, fez-nos ganhar “calo” para as dificuldades que tarde ou cedo acabaram por chegar.
Eu também concordo que é na rua, na convivência com os outros, que se ganha consciência da diferença, e que é, muitas vezes, na transgressão das regras que apreendemos a diferença entre o bem e o mal. É por isso que considero ser mais útil e mais saudável um jogo de bola, com cabeças partidas, joelhos esfolados, brigas e discussões do que a solidão (e a protecção) de um quarto, de frente para uma consola ou para o episódio já repetido dos Morangos com Açúcar.
No entanto, não acho que o mal esteja em se “ter mais”. É bom para qualquer menino ter uma mãe em casa que nos passe, em jeito de herança, a colecção dos Cinco e nos diga que é importante ler. É melhor, do que ter uma mãe que, ao invés, tenha como única leitura semanal as páginas da revista Maria.
É bom, é um privilégio, ter uns pais como os meus, que me passaram o vício das viagens, me compraram um piano para eu aprender música, ou me iam buscar todos os dias aos treinos da natação. Tudo isso é bom, mesmo o amargo de boca de perceber que há sempre alguém ao nosso lado que tenha ainda mais.
É bom, desde que os pais, como principais educadores, saibam mostrar às crianças que os “extra” são isso mesmo, são privilégios que se devem merecer, conquistar. Tudo tem um sabor diferente quando foi ganho com esforço, com sacrifício.
Eu acredito que as crianças melhor preparadas serão crianças mais felizes, mas a felicidade não é ter todos os livros da Camila, é antes ter um pai presente e disponível para nos ler a história ao deitar mesmo depois de ter tido um dia de trabalho cansativo. Felicidade não é poder ir a uma aula de ballet, é ter uma mãe a esperar-nos à porta, sorrindo cada vez que nos vê fazer uma nova pirueta. Felicidade é crescer sem perder a inocência de menino que, para mim, se resume na capacidade de nos surpreendermos sempre, especialmente com coisas simples, como ler desabafos sinceros.
Enviar um comentário
<< Home