3º Desabafo - 18.10.2006
De visita a Évora para casar um amigo, sábado passado, desconhecia ainda que acabaria durante o fim-de-semana por estar envolvido em acontecimentos que me iriam fazer sentir na pele, a mais vasta gama de sentimentos que pode experimentar o ser humano: da mais esfusiante alegria à mais profunda das tristezas.
Sim, Évora é uma cidade magnífica e o tal Templo de Diana, junto ao qual se celebrou a cerimónia nupcial, é imponente e faz-nos vibrar mas não sabendo bem porquê, dei por mim a admirá-lo com uma pontinha de inveja a toldar-me a razão. Ser isto parte do Património Mundial e eu ver o meu Marvão, o Marvão das deslumbrantes vistas donde Saramago viu o mundo inteiro, a ficar à porta… Desculpem, mas não me conformo.
Mas um casamento é sempre um momento enternecedor e chega a comover-nos o poder ser cúmplices da felicidade transbordante dos jovens nubentes. Saber que há alguém no mundo que consegue esquecer, nem que seja por momentos tudo o que há de mau, e sorrir daquela maneira magnética… Por muito marretas que sejamos, temos mesmo de acreditar no poder transcendente e contagiante do amor.
Envolvidos por esta vibrante onda de energia positiva, levitantes na fase pré-copo de água, entre um salgado e um vermout, bem vestidos e bem dispostos, somos tomados de assalto pela triste novidade que viperina e sorrateira se instalou nas mentes incrédulas. Num ápice e de um só golpe, sem deixar réstia de esperança ou fôlego, o coração tinha traído mais um jovem e prestigiado marvanense. 50 anos recém-cumpridos há dias. Respeitado e sem vícios, sempre afável e cordial, partiu como um cavalheiro, enquanto passeava pelos campos, provavelmente preparando com devoção a caçada do domingo seguinte.
Acordei para um pequeno-almoço em família seguido de passeio dominical pelos encantos eborenses. A ampla Praça do Giraldo e claro, esse inevitável lugar mágico e sempre de paragem obrigatória nas longas jornadas de viajem para férias nas terras do Al-Gharb, quando se demorava um dia inteirinho e se passava por dentro de todas as localidades: a capela dos ossos, junto à Igreja de São Francisco! Apesar de não a visitar há anos, há já muitos anos mesmo, o poder daquele lugar é de tal forma inebriante que jamais o esqueci. Estranhei o acesso ter mudado de lugar e não consegui evitar o sorriso ao ver que houve desde a minha última visita, alguém bem português que entendeu a fonte de receita e ossos, hoje, não há gente crescida que os veja ali por menos de euro e meio.
À entrada, a inscrição intimida e anuncia que a dimensão que se segue exige respeito e contemplação: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”. Poucos minutos depois de entrar e acabado de passar o arrepio da praxe, acabei por compreender então a óbvia estranheza que o insólito e macabro décor me transmitia em criança. No fundo, a razão por que carga de água, três monges do séc. XVII se lembraram de conceber este monumental portento de arquitectura penitencial, ao reunirem de uma assentada perto de 5000 estruturas ósseas, verdadeiros alicerces que serviram de roupagem terrena a outros tantos viventes, não é mais que aquela que eu ouvi tantas vezes sair em sussurro da boca do padre da aldeia, nas quartas-feiras de cinzas, enquanto fazia o sinal do cruz na testa do fiel:”lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar”.
A efémera fragilidade da vida humana. Elementar!
Não gosto de funerais e aí penso que não serei muito diferente da maioria dos ouvintes. Deixam-me nervoso e custa-me particularmente ver que muitas vezes, muitos dos que se dignam a prestar esse último adeus, tudo fazem para que a solenidade do acto seja tudo menos solene. Aproveita-se para se falar de tudo e de nada, alvitra-se o tempo, o estado do país e do futebol e às vezes chega-se ao ponto de se comentar a saúde deste ou daquele que se perfila para ser o próximo nessa inexorável caminhada face ao nada.
De regresso ao meu concelho, no domingo e em silêncio como sempre, acompanhei o cortejo fúnebre imerso nestas considerações. O silêncio doloroso reinante nos minutos derradeiros da cerimónia, vai-se tornando em murmúrio e depois em diálogo, à medida que os acompanhantes abandonam o cemitério e se aproximam da povoação.
Para trás ficam as lápides alvas, as flores artificiais e o vazio sepulcral. Junto à civilização, mergulhamos na centrifugadora existência dos nossos tempos, de escravos dos horários e das coisas físicas, das guerrilhas diárias do acordar ao deitar.
Esquecemos assim os frades, as cinzas e a voraz vertigem que no espaço de um dia, e volto ao início do meu raciocínio, nos mostra quão rápida é a viajem do dia para a noite, da luz para a treva, do tudo para o nada. É pena…
Não resisto a deixá-los com o poderoso soneto do padre António da Ascenção Teles que decora em quadro de madeira antiga, um dos pilares da dita capela dos ossos:
Aonde vais, caminhante, accelerado,
Pára… não prosigas mais avante,
Negócio não tens mais importante,
Do que este à tua vista apresentado.
Recorda quantos desta vida tem passado,
Reflecte em que terás fim similhante,
Que para meditar causa he bastante,
Terem todos os mais nisto parado.
Pondera que influído d’essa sorte
Entre negociações do mundo tantas,
Tão pouco consideras na da morte.
Porém, se os olhos aqui levantas,
Pára… porque em negociações deste porte
Quanto mais tu parares, mais adiantas.
De visita a Évora para casar um amigo, sábado passado, desconhecia ainda que acabaria durante o fim-de-semana por estar envolvido em acontecimentos que me iriam fazer sentir na pele, a mais vasta gama de sentimentos que pode experimentar o ser humano: da mais esfusiante alegria à mais profunda das tristezas.
Sim, Évora é uma cidade magnífica e o tal Templo de Diana, junto ao qual se celebrou a cerimónia nupcial, é imponente e faz-nos vibrar mas não sabendo bem porquê, dei por mim a admirá-lo com uma pontinha de inveja a toldar-me a razão. Ser isto parte do Património Mundial e eu ver o meu Marvão, o Marvão das deslumbrantes vistas donde Saramago viu o mundo inteiro, a ficar à porta… Desculpem, mas não me conformo.
Mas um casamento é sempre um momento enternecedor e chega a comover-nos o poder ser cúmplices da felicidade transbordante dos jovens nubentes. Saber que há alguém no mundo que consegue esquecer, nem que seja por momentos tudo o que há de mau, e sorrir daquela maneira magnética… Por muito marretas que sejamos, temos mesmo de acreditar no poder transcendente e contagiante do amor.
Envolvidos por esta vibrante onda de energia positiva, levitantes na fase pré-copo de água, entre um salgado e um vermout, bem vestidos e bem dispostos, somos tomados de assalto pela triste novidade que viperina e sorrateira se instalou nas mentes incrédulas. Num ápice e de um só golpe, sem deixar réstia de esperança ou fôlego, o coração tinha traído mais um jovem e prestigiado marvanense. 50 anos recém-cumpridos há dias. Respeitado e sem vícios, sempre afável e cordial, partiu como um cavalheiro, enquanto passeava pelos campos, provavelmente preparando com devoção a caçada do domingo seguinte.
Acordei para um pequeno-almoço em família seguido de passeio dominical pelos encantos eborenses. A ampla Praça do Giraldo e claro, esse inevitável lugar mágico e sempre de paragem obrigatória nas longas jornadas de viajem para férias nas terras do Al-Gharb, quando se demorava um dia inteirinho e se passava por dentro de todas as localidades: a capela dos ossos, junto à Igreja de São Francisco! Apesar de não a visitar há anos, há já muitos anos mesmo, o poder daquele lugar é de tal forma inebriante que jamais o esqueci. Estranhei o acesso ter mudado de lugar e não consegui evitar o sorriso ao ver que houve desde a minha última visita, alguém bem português que entendeu a fonte de receita e ossos, hoje, não há gente crescida que os veja ali por menos de euro e meio.
À entrada, a inscrição intimida e anuncia que a dimensão que se segue exige respeito e contemplação: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”. Poucos minutos depois de entrar e acabado de passar o arrepio da praxe, acabei por compreender então a óbvia estranheza que o insólito e macabro décor me transmitia em criança. No fundo, a razão por que carga de água, três monges do séc. XVII se lembraram de conceber este monumental portento de arquitectura penitencial, ao reunirem de uma assentada perto de 5000 estruturas ósseas, verdadeiros alicerces que serviram de roupagem terrena a outros tantos viventes, não é mais que aquela que eu ouvi tantas vezes sair em sussurro da boca do padre da aldeia, nas quartas-feiras de cinzas, enquanto fazia o sinal do cruz na testa do fiel:”lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar”.
A efémera fragilidade da vida humana. Elementar!
Não gosto de funerais e aí penso que não serei muito diferente da maioria dos ouvintes. Deixam-me nervoso e custa-me particularmente ver que muitas vezes, muitos dos que se dignam a prestar esse último adeus, tudo fazem para que a solenidade do acto seja tudo menos solene. Aproveita-se para se falar de tudo e de nada, alvitra-se o tempo, o estado do país e do futebol e às vezes chega-se ao ponto de se comentar a saúde deste ou daquele que se perfila para ser o próximo nessa inexorável caminhada face ao nada.
De regresso ao meu concelho, no domingo e em silêncio como sempre, acompanhei o cortejo fúnebre imerso nestas considerações. O silêncio doloroso reinante nos minutos derradeiros da cerimónia, vai-se tornando em murmúrio e depois em diálogo, à medida que os acompanhantes abandonam o cemitério e se aproximam da povoação.
Para trás ficam as lápides alvas, as flores artificiais e o vazio sepulcral. Junto à civilização, mergulhamos na centrifugadora existência dos nossos tempos, de escravos dos horários e das coisas físicas, das guerrilhas diárias do acordar ao deitar.
Esquecemos assim os frades, as cinzas e a voraz vertigem que no espaço de um dia, e volto ao início do meu raciocínio, nos mostra quão rápida é a viajem do dia para a noite, da luz para a treva, do tudo para o nada. É pena…
Não resisto a deixá-los com o poderoso soneto do padre António da Ascenção Teles que decora em quadro de madeira antiga, um dos pilares da dita capela dos ossos:
Aonde vais, caminhante, accelerado,
Pára… não prosigas mais avante,
Negócio não tens mais importante,
Do que este à tua vista apresentado.
Recorda quantos desta vida tem passado,
Reflecte em que terás fim similhante,
Que para meditar causa he bastante,
Terem todos os mais nisto parado.
Pondera que influído d’essa sorte
Entre negociações do mundo tantas,
Tão pouco consideras na da morte.
Porém, se os olhos aqui levantas,
Pára… porque em negociações deste porte
Quanto mais tu parares, mais adiantas.
1 Comments:
Realmente Évora é uma cidade lindíssima...Boa sorte com o Blog!
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