Desabafos de Marvão

O convite de um amigo para desabafar na Rádio Portalegre, todas as quartas, às 7.30h, 10.30h, 13.30h, 17.30h, 23.30h, levou-me também a criar um espaço, na blogosfera, onde possam ficar registados os textos da versão radiofónica. Espero que gostem e já agora, se não for pedir muito, que vos dê que pensar. Um abraço...

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Um rapazinho de Marvão

quinta-feira, novembro 02, 2006

5º Desabafo – 31.10.2006 – Aborto


Vivemos num tempo em que a esquerda e a direita se confundem. Eu próprio já vivi na pele “regimes” caseiros de esquerda que vestidos sob a pele de cordeiro, de eternos defensores dos desfavorecidos, aplicavam a mais dura escola de opressão, tão característica dos regimes totalitários de direita. Serve o presente como intróito para uma questão bem actual. Porque se há característica que reconheço nos socialistas em geral e nos do meus país em concreto, é a persistência. Acho-lhes piada e sendo assim, ano e meio depois de ter assumido a maioria parlamentar e à terceira tentativa, o Partido Socialista conseguiu aprovar a proposta para a convocação de um referendo ao aborto, iniciando um processo que irá culminar com nova consulta aos portugueses, no início do ano que vem, e a apenas 8 anos da última investida.

E irá ser assim: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”

Para já, para já, e tirando assim um primeiro comentário a talho de foice, não posso deixar de dizer o quanto me aborrece o facto de cada vez que se fala em tal assunto, parece que se esquecem que nós, homens, também existimos e temos cabeça entre as orelhas. Cá para mim, escusam de tirar as bandeiras e andar aos gritos pelas ruas que “a barriga é minha e eu faço com ela o que bem me apetecer”, como se fosse mais uma batalha pela emancipação e libertação das mulheres, porque esta questão, minhas amigas, é muito mais profunda, muito mais vasta e desculpem lá estragar-vos o arraial, mas é sobretudo uma questão de vida, de arquitectura ética e ideológica e aí, nós, os homens, também temos uma opinião a dar. Não é, em definitivo, uma história de mulheres, é um assunto de humanidades.

A meu ver, o aborto, tal como a eutanásia ou a pena de morte, são questões de tal maneira profundas que não pode haver uma só alma viva que consiga acreditar em absoluto na posição que defende, seja ela qual for. Creio que se houvesse assim um que fosse tão certo, ao ser confrontado com uma bateria de argumentos do lado contrário, iria tremer e hesitar, porque quando nós humanos nos armamos em deuses e pensamos decidir sobre a vida e a morte, seja para servir corporações, interesses ou a nossa própria visão, entramos num território que não é nosso e nos está vedado põe essa simples condição.

Mas acho graça a estes bailes mandados e vibro com o corrupio que se instala. Faz-me lembrar aqueles circos que visitavam antigamente as aldeias do interior, numa roulotte a cair de velha em que toda a família fazia de tudo, e só a meio do espectáculo associávamos as coisas e descobríamos defraudados que o trapezista era também o mágico e o cobrador de entradas. As coisas que um simples bigode não faz!

Brigam os políticos entre si, os comunistas e os “cêdê esses”, os do Sócrates que se riem e o Mendes que diz aos seus “vocês é que sabem”, brigam os defensores do sim e do não, e ainda falta a Igreja, o papa e o gajo do Sporting que vai ao meu lado no autocarro, os comentadores da televisão e a porteira do prédio que até tem uma prima que já foi a BADAJORGE, (assim mesmo) e resolveu a coisa! A coisa! Todos sabem, não pensam, sabem que têm razão. Ou será que não?

Do lado do Sim dizem que já chega de tanta mentira, de fechar os olhos e fingir que não vemos, que somos um sociedade evoluída, estamos no século XXI, e as mulheres, coitadinhas, nas mãos de bruxas em clínicas manhosas, a sofrer… e algumas a rebentarem com as entranhas numa latrina qualquer perdida no nada, pensando que com o desmancho anulavam uma falsa partida infeliz para uma vida que não querem. Não vêm que não podemos fingir que não existem, que toda a gente sabe que a Clínica dos Arcos rivaliza com o Corte Inglês pelo título de sítio mais “in” e português de Badajoz? Que as mulheres é que sabem, elas é que mandam e tu está calado e vê a bola e não te metas. Que tem que ser, que é tudo as limpas, esterilizado, asseado, discreto, pago com Multibanco.

Do Não, a Igreja Canónica, de bíblia na mão, a mesma que vê a SIDA galgar fronteiras e o mundo, subindo tresloucada África acima, invadindo a Europa e arrasando os Estados Unidos, e diz que não ao preservativo. As beatas com xailes por cima dos ombros e lenços na cabeça, e os jovens, de guitarras na mão e crucifixos de Taizé ao pescoço, a cantarem exaltados que a vida é que sim, é que sim. Vida sim e morte não!

Está um gajo nisto… Novembro é um tiro, o Natal agora com as campanhas começa em Setembro e quando damos por nós, temos, literalmente, o menino nas mãos.

Que fazer? A quem ouvir e Meu Deus, já agora… para onde é que eu vou? Para que lado é que caio ou para onde me viro?

Há 10 anos atrás, recém-licenciado, recém-regressado do exílio universitário de Lisboa, recém-entrado no mercado de trabalho, enfim, na condição de recém-tudo, com um namoro reincidente de 8 ou 9 anos no historial, também eu enfrentei a dúvida, olhos nos olhos. A minha então namorada e hoje mulher, engravidou. E é engraçado, porque como todos os jovens, também nós já tínhamos passado por sustos e hesitações, também nós já tínhamos comentado, em conversas informais de fim de tarde ou noite dentro, que faríamos se? Que seríamos nós capazes de fazer se? E houve um dia em que o se, se tornou verdade e eu, acabado de entrar na casa dos vinte, dou por mim lívido e periclitante, a ouvir estarrecido da boca do farmacêutico novato dos Assentos (era a farmácia onde ía menos gente conhecida, grau zero de suspeita!) que era positivo! Era o quê? O teste era positivo! Ela, encolhida, colada ao banco do carro, olhava para mim do outro lado da estrada através do vidro com um olhar de ferro e desespero, à espera de um esboço de felicidade meu que a tranquilizasse… mas ao ver a minha pressa, teve a confirmação que haveria de segundos depois de ouvir da minha boca. Choro! Eu já sabia!

Depois de passado o primeiro avanço do estado de choque e assolados por uma estranha tranquilidade que se apoderou de ambos vinda sabe-se lá de onde, acabamos por nessa mesma tarde por dar a conhecer o segredo à família inteira e só não dissemos a mais familiares pessoalmente porque os meus primos mais próximos estavam na Covilhã. Nunca desde o primeiro segundo, fomos capazes de vislumbrar outro caminho senão o da vida.

Pois essa vida que ambos começamos logo a amar com tanta força, quis Deus que não tivesse seguido todo o percurso até nós e voltou para onde tinha partido… para anos depois regressar sobre a forma de menina que os meus amigos que me ouvem já conhecem de outros desabafos.

O doloroso processo que se seguiu a esses dias foi por nós ultrapassado, juntos, com a férrea convicção do dever cumprido e de ter feito o que deveria ter sido feito. Sem sombra de arrependimento a pairar sobre nós.

Porque por muito mãe que seja uma mãe, bem cedo terá que compreender, se boa mãe for, que esse coração que às 5 semanas começa a ser formado, há-de dentro em breve bater por si próprio e já não lhe pertence a ela. Porque apesar de minúsculo, se só a natureza falar, há-de um dia sair para fora e seguir o seu caminho, que é o bem mais precioso que todos temos, o de podermos seguir a nossa própria vida como queremos, com todo o bem e todo o mal que nos espera pela frente.

1 Comments:

Blogger Catarina said...

cá está:
http://blogcatita.blogspot.com/2006/11/o-aborto-e-eu.html

12:44 da tarde  

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