7º Desabafo – 14.11.2006 – A recompensa que ninguém queria receber
Faz neste mês precisamente quatro anos que o país acordou assustado para um escândalo sexual que haveria de abalar os alicerces da nossa sociedade e de deixar bem exposta a ferida sob as lacunas do nosso sistema judicial. Foi há quatro anos que um rapazinho destemido, encostadinho aos ecrãs das nossas casas, confessou de costas viradas e voz distorcida, aquilo que muitos suspeitavam e outros sabiam há muito: na Casa Pia de Lisboa havia lobos que sob a pele de cordeiros se alimentavam dos escombros de muitas infâncias infelizes.
Quebrou-se assim um segredo há muito conhecido mas sempre silenciado por misteriosas forças de bloqueio, pondo fim a uma infeliz tradição que desvirtuava por completo uma história plena de sentido.
Fundada no dia 3 de Julho de 1780, no reinado de D. Maria I, para dar resposta aos problemas sociais decorrentes do terramoto que devastou a cidade de Lisboa, recebendo crianças pobres, órfãs e abandonadas, a Casa Pia haveria de se transformar com recurso a audaciosos métodos pedagógicos, no primeiro estabelecimento de educação popular do País e na mais significativa instituição de assistência a menores.
Sendo hoje a maior instituição portuguesa dedicada ao acolhimento, educação, ensino e inserção social de crianças e jovens sem apoio familiar normal ou em risco de exclusão social, tem à sua responsabilidade cerca de 4700 educandos, distribuídos por dez Estabelecimentos e outros diversos equipamentos sociais.
Os estatutos gabam-na de ser uma escola global onde, a par do acolhimento e do sustento, se preparam os jovens para uma sã integração social cultivando a destreza das mãos, a inteligência, o desenvolvimento físico, a formação espiritual, moral e religiosa, os valores do trabalho e da solidariedade tanto quanto os da cultura, da ecologia ou do desporto. Respira-se orgulho ao se identificar como um estabelecimento que recebendo como matéria-prima crianças e jovens na maioria dos casos excluídos do sistema escolar normal conseguiu produzir através dos tempos, incontáveis personalidades que se distinguiram nos mais variados ramos do saber, das artes, da política, do desporto, da vida económica, social e cultural do País.
Há quatro anos haveríamos todos de saber que a vida é bem diferente do que se sonha no papel. Esse turbilhão informativo, essa avalanche de novidades que a todos deixou boquiabertos, haveria de levar consigo sob o manto da suspeita, apresentadores de televisão entradotes, médicos conceituados, humoristas consagrados e até eminentes políticos e embaixadores. Todos suspeitos mas todos isentos porque essa presunção de inocência até prova em contrário é um trunfo que vale por dois.
Todos nós sabíamos que esse apresentador de televisão até já tinha confessado em entrevistas que com o passar dos anos os seus apetites no que diz respeito a carne humana tinham mudado e que chegado perto dos quarenta, estava cada vez mais aberto a propostas ousadas no campo sexual; como todos nós sabíamos que esse médico de barba grisalha e ar introvertido, tinha currículo bem conhecido em rotas de perversão do bas-fond alfacinha. Todos inocentes mas esse verdadeiro humorista português há muito que insinuava que as suas orientações sexuais iam num sentido bem diferente daquele que a grande maioria dos portugueses tinha como pré-definido. Nada de apontar o dedo, mas sim, sim, o nosso embaixador há muito que era conhecido pelas autoridades por gostar de meninos e sobretudo por ser exímio em esgueirar-se das acusações e sair de cara lavada.
Porque um embaixador, meus amigos, não é propriamente o Zé da Esquina. Tal como o solo das embaixadas noutros países é considerado território nacional português, os embaixadores são também a cara do Estado e de todos nós quando em exercício das suas funções no exterior. Quero eu dizer com isto que não chega a embaixador quem quer, mas quem pode. Ou se preferirem de outra forma, é mais fácil apanhar um de nós do que a um embaixador.
Mas assim que a coisa estoirou, e bem à maneira de velha máfia siciliana, a pirâmide hierárquica ruiu, os chefes, os capos, a pesca grossa saltou da embarcação rumo a alto-mar e quem ficou preso nas redes foi um tal de Bibi, angariador-mor, pivot da organização, mestre de cerimónias e quando fazia falta, motorista também, aquele que levava os meninos a passear para o tal apartamento na linha ou para a quieta casa de Elvas (e tão perto que Elvas ficou então!). Na parte que me toca, a vergonha chegou cá!
Tido inicialmente como o mau da fita, escondido detrás da gola alta de um quispo vermelho, respondendo nervoso e de sorriso enigmático às perguntas da primeira repórter, haveria depois de contar a sua história, haveria depois de dizer que também ele tinha sido vítima do processo, que também ele fazia parte deste lamentável historial e nós passávamos assim a saber que os abusos sexuais não eram de agora, mas sim prática corrente de há muitas gerações.
Há muito que eram conhecidos os meninos da Casa Pia. Há muito se falava nessa infame tradição e nos brutais ritos de passagem a que eram sumetidos. Os relatos trémulos que encheram os nossos dias de então falavam de medo, de noites sozinhas no escuro dos lençóis à espera… de corpos nus tremendo de frio nos corredores intermináveis quando só o luar ousava entra pelas janelas altas, de gritos abafados nos chuveiros, de pedidos de ajuda que mais ninguém podia ouvir, de dias e meses e anos a sofrer em silêncio, sem uma mão amiga para os consolar.
Às vezes, parece que Deus está mesmo longe demais.
Esta semana, o Estado, esse Estado que somos todos nós, começou a pagar as indemnizações fixadas pelo Tribunal Arbitral em Abril último, assim que se confirmaram as provas do abuso sexual, para tentar compensar a sua negligência por não ter protegido quem tinha à sua guarda e cuidado. No total, foram atribuídas 44 indemnizações: 39 pelo valor máximo (50 mil euros), duas com 25 mil euros e três com quatro mil.
Pouco mais que nada.
Ao folhear a imprensa escrita, deparo estarrecido com a declaração de Catalina Pestana, actual Provedora, que do alto do seu ar de sargento reformado, disse com o maior dos desplantes que “procuro fazer como se eles fossem meus filhos e lhes tivesse saído um prémio no totoloto”. Eu sei que há dias infelizes, não duvido da boa vontade da senhora ao preocupar-se na forma como os jovens investem o dinheiro e na sensatez do seu desejo em que a compra de habitação própria deva ser uma preocupação para todos, mas também sei que há coisas que não se dizem.
Como há coisas que o dinheiro não paga.
Porque é impossível achar justo indemnizar esta meia centena quando há muitas outras centenas que hoje constituíram famílias, refizeram as suas vidas e hão-de levar consigo esse segredo para baixo de terra. Falam com ele todos os dias e há-de morrer com eles.
Para esses e todos os outros que foram infelizes protagonistas ou figurantes deste terrível romance, a recompensa ideal (e já que o tempo não volta para trás), nunca será pecuniária mas sim penal, se aqueles que lhe roubaram a alegria de viver apodrecessem numa cela qualquer, consumidos pela culpa, castigados por uma justiça atenta, isenta, mas dura e efectiva.
Seria assim num cenário ideal. Seria assim se vivêssemos no país com que todos sonhamos dia-a-dia. Mas como referi há pouco, aquilo que se quer quase nunca é o que se tem e ou muito eu me engano ou os anos hão-de passar, a memória há-de esquecer, a poeira há-de assentar, as indemnizações hão-de arder e pouco ou nada há-de mudar no meio desta história toda.
Já seria suficientemente bom e gratificante se a segurança e o cuidado dos responsáveis, deixassem no futuro, os meninos da Casa Pia terem direito àquilo que todos os meninos ambicionam: a oportunidade de se fazerem homens num ambiente de afecto, sem traumas e perseguições.
Quebrou-se assim um segredo há muito conhecido mas sempre silenciado por misteriosas forças de bloqueio, pondo fim a uma infeliz tradição que desvirtuava por completo uma história plena de sentido.
Fundada no dia 3 de Julho de 1780, no reinado de D. Maria I, para dar resposta aos problemas sociais decorrentes do terramoto que devastou a cidade de Lisboa, recebendo crianças pobres, órfãs e abandonadas, a Casa Pia haveria de se transformar com recurso a audaciosos métodos pedagógicos, no primeiro estabelecimento de educação popular do País e na mais significativa instituição de assistência a menores.
Sendo hoje a maior instituição portuguesa dedicada ao acolhimento, educação, ensino e inserção social de crianças e jovens sem apoio familiar normal ou em risco de exclusão social, tem à sua responsabilidade cerca de 4700 educandos, distribuídos por dez Estabelecimentos e outros diversos equipamentos sociais.
Os estatutos gabam-na de ser uma escola global onde, a par do acolhimento e do sustento, se preparam os jovens para uma sã integração social cultivando a destreza das mãos, a inteligência, o desenvolvimento físico, a formação espiritual, moral e religiosa, os valores do trabalho e da solidariedade tanto quanto os da cultura, da ecologia ou do desporto. Respira-se orgulho ao se identificar como um estabelecimento que recebendo como matéria-prima crianças e jovens na maioria dos casos excluídos do sistema escolar normal conseguiu produzir através dos tempos, incontáveis personalidades que se distinguiram nos mais variados ramos do saber, das artes, da política, do desporto, da vida económica, social e cultural do País.
Há quatro anos haveríamos todos de saber que a vida é bem diferente do que se sonha no papel. Esse turbilhão informativo, essa avalanche de novidades que a todos deixou boquiabertos, haveria de levar consigo sob o manto da suspeita, apresentadores de televisão entradotes, médicos conceituados, humoristas consagrados e até eminentes políticos e embaixadores. Todos suspeitos mas todos isentos porque essa presunção de inocência até prova em contrário é um trunfo que vale por dois.
Todos nós sabíamos que esse apresentador de televisão até já tinha confessado em entrevistas que com o passar dos anos os seus apetites no que diz respeito a carne humana tinham mudado e que chegado perto dos quarenta, estava cada vez mais aberto a propostas ousadas no campo sexual; como todos nós sabíamos que esse médico de barba grisalha e ar introvertido, tinha currículo bem conhecido em rotas de perversão do bas-fond alfacinha. Todos inocentes mas esse verdadeiro humorista português há muito que insinuava que as suas orientações sexuais iam num sentido bem diferente daquele que a grande maioria dos portugueses tinha como pré-definido. Nada de apontar o dedo, mas sim, sim, o nosso embaixador há muito que era conhecido pelas autoridades por gostar de meninos e sobretudo por ser exímio em esgueirar-se das acusações e sair de cara lavada.
Porque um embaixador, meus amigos, não é propriamente o Zé da Esquina. Tal como o solo das embaixadas noutros países é considerado território nacional português, os embaixadores são também a cara do Estado e de todos nós quando em exercício das suas funções no exterior. Quero eu dizer com isto que não chega a embaixador quem quer, mas quem pode. Ou se preferirem de outra forma, é mais fácil apanhar um de nós do que a um embaixador.
Mas assim que a coisa estoirou, e bem à maneira de velha máfia siciliana, a pirâmide hierárquica ruiu, os chefes, os capos, a pesca grossa saltou da embarcação rumo a alto-mar e quem ficou preso nas redes foi um tal de Bibi, angariador-mor, pivot da organização, mestre de cerimónias e quando fazia falta, motorista também, aquele que levava os meninos a passear para o tal apartamento na linha ou para a quieta casa de Elvas (e tão perto que Elvas ficou então!). Na parte que me toca, a vergonha chegou cá!
Tido inicialmente como o mau da fita, escondido detrás da gola alta de um quispo vermelho, respondendo nervoso e de sorriso enigmático às perguntas da primeira repórter, haveria depois de contar a sua história, haveria depois de dizer que também ele tinha sido vítima do processo, que também ele fazia parte deste lamentável historial e nós passávamos assim a saber que os abusos sexuais não eram de agora, mas sim prática corrente de há muitas gerações.
Há muito que eram conhecidos os meninos da Casa Pia. Há muito se falava nessa infame tradição e nos brutais ritos de passagem a que eram sumetidos. Os relatos trémulos que encheram os nossos dias de então falavam de medo, de noites sozinhas no escuro dos lençóis à espera… de corpos nus tremendo de frio nos corredores intermináveis quando só o luar ousava entra pelas janelas altas, de gritos abafados nos chuveiros, de pedidos de ajuda que mais ninguém podia ouvir, de dias e meses e anos a sofrer em silêncio, sem uma mão amiga para os consolar.
Às vezes, parece que Deus está mesmo longe demais.
Esta semana, o Estado, esse Estado que somos todos nós, começou a pagar as indemnizações fixadas pelo Tribunal Arbitral em Abril último, assim que se confirmaram as provas do abuso sexual, para tentar compensar a sua negligência por não ter protegido quem tinha à sua guarda e cuidado. No total, foram atribuídas 44 indemnizações: 39 pelo valor máximo (50 mil euros), duas com 25 mil euros e três com quatro mil.
Pouco mais que nada.
Ao folhear a imprensa escrita, deparo estarrecido com a declaração de Catalina Pestana, actual Provedora, que do alto do seu ar de sargento reformado, disse com o maior dos desplantes que “procuro fazer como se eles fossem meus filhos e lhes tivesse saído um prémio no totoloto”. Eu sei que há dias infelizes, não duvido da boa vontade da senhora ao preocupar-se na forma como os jovens investem o dinheiro e na sensatez do seu desejo em que a compra de habitação própria deva ser uma preocupação para todos, mas também sei que há coisas que não se dizem.
Como há coisas que o dinheiro não paga.
Porque é impossível achar justo indemnizar esta meia centena quando há muitas outras centenas que hoje constituíram famílias, refizeram as suas vidas e hão-de levar consigo esse segredo para baixo de terra. Falam com ele todos os dias e há-de morrer com eles.
Para esses e todos os outros que foram infelizes protagonistas ou figurantes deste terrível romance, a recompensa ideal (e já que o tempo não volta para trás), nunca será pecuniária mas sim penal, se aqueles que lhe roubaram a alegria de viver apodrecessem numa cela qualquer, consumidos pela culpa, castigados por uma justiça atenta, isenta, mas dura e efectiva.
Seria assim num cenário ideal. Seria assim se vivêssemos no país com que todos sonhamos dia-a-dia. Mas como referi há pouco, aquilo que se quer quase nunca é o que se tem e ou muito eu me engano ou os anos hão-de passar, a memória há-de esquecer, a poeira há-de assentar, as indemnizações hão-de arder e pouco ou nada há-de mudar no meio desta história toda.
Já seria suficientemente bom e gratificante se a segurança e o cuidado dos responsáveis, deixassem no futuro, os meninos da Casa Pia terem direito àquilo que todos os meninos ambicionam: a oportunidade de se fazerem homens num ambiente de afecto, sem traumas e perseguições.
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