10º Desabafo – 6 de Dezembro de 2006 – Fracções do interior
Pois é, meus amigos… por mais que nos custe, temos mesmo de nos render à evidência e reconhecer que para os nossos governantes já não somos o Chico ou o Manel, o Asdrúbal ou a Delfina; para os nossos governantes somos… números e daí não passaremos.
Para eles somos tendências, colunas, linhas e flutuações num mar imenso de estatísticas. Vimos assim a nossa errática existência reduzida à condição de algarismo. Esvaziados de alma, memória e autonomia, corremos o risco de um momento para o outro nos transformarmos num dígito e nada mais.
Os senhores bem nos explicam, gesticulam e argumentam que contra factos não há argumentos. Contra os números, nada a fazer. Os números nunca mentem.
Convencidos de que esta lógica aritmética é o caminho para a salvação, certos de que os automatismos serão a chave do sucesso, esquecem-se de tudo o resto, esquecem-se do mais importante, daquilo que nos faz tão diferentes de tudo resto, de tudo o que a terra carrega com custo à sua superfície.
Assisto assim atónito ao desmembramento de estruturas que aprendi desde sempre a considerar para toda a vida. Enfeitiçados pelo fascínio dos números, os governantes matam a pouco e pouco o interior e com ele o país. Caminhando como sonâmbulos para o abismo, quais ratitos detrás do flautista de Hammelin, embevecidos pela magia desta álgebra maléfica alegam que o que não rende, não justifica e o que não justifica, fecha.
Em vez de corrigir simetrias, de dar incentivos, de fomentar o repovoamento, chamemos-lhe assim, das terras do interior, assistem impávidos e serenos a esta absurda migração que há-de matar de enfarto as já mais que enfartadas metrópoles lusitanas.
Em vez de planear, repensar, distribuir o tecido humano pelo nosso território de uma forma equilibrada e equitativa, lavam as mãos como Pilatos perante a multidão, assobiam e olham para o lado, fingem que não nos ouvem, que não nos vêem, que não existimos. Os números às vezes não falam. Às vezes não dizem nada.
E assim está Portugal: tombado, caído para o litoral norte, litoral centro, litoral sul, como se nada mais houvesse que o mar, como o alterofilista do filme que só exercitava a parte direita do corpo. Disforme. Assim está o nosso país, que qualquer dia de tão debruçado, há-de cair borda fora e deixar-se levar pelas correntes profundas, oceano adentro, para desaparecer para sempre nas fossas abissais.
Deveriam aprender com os colonos idos da velha Europa, de há dois séculos atrás que na urgência de povoar as terras áridas do novo Continente, deram propriedades e ouro e demais regalias nunca antes vistas, para motivar e empurrar os recém chegados para esses territórios inóspitos defendidos até à morte pelos peles-vermelhas autóctones.
Esquecem-se as terras de dentro e deixa-se o flanco exposto à cobiça castelhana. Fossem outros os tempos e era vê-los entrar a toda a força, para tomar o que os nossos desperdiçaram aos abutres.
Bem sei que durante o século passado, assistimos a essa migração quase óbvia das classes desfavorecidas do interior em busca do sonho da cidade, onde as mordomias do mundo moderno estavam mesmo à mão de semear. Num país pobre, analfabeto, cerceado pelo regime, com uma ruralidade agreste a fervilhar nas entranhas, o sonho da urbe era simultaneamente a esperança e a redenção. Compreende-se. O que não percebo é esta migração massiva actual para aquilo que ninguém quer.
E acaba por ser um contrasenso. Quem não está lá está deserto de para lá ir. Quem lá está não vê a hora de sair quanto antes. Porque não podem. As filas intermináveis, a pressão do dia-a-dia, o viver incaracterístico, a poluição, a insegurança, tudo o que é mau e incomoda. Mas vão e ficam. E no meu interior, é vê-los partir de armas e bagagens e qualquer dia, nada restará senão aquilo que existia antes do homem chegar.
Fecham as escolas. Não há meninos. O senhor da Associação de pais queixa-se que cada sala merece um professor. É o desejável. Concordo. O representante do Governo é que não. Porquê? Se o número de alunos não é suficiente, o professor tem de dar para mais de uma turma. Estica-se! A lógica do número!
O posto da GNR deixa de estar aberto de dia e de noite, os militares concentram-se num único posto na sede de concelho. Mas porquê se não era assim? Porque o número de habitantes não justifica tanto militar de vigia. Assim, os que há, circulam no jipe e o serviço acaba por ser o mesmo. A lógica? Do número!
E porque razão há-de o médico espanhol que mora aqui ao lado, que já está ambientado com a população, que já está integrado na comunidade, ter de se ir embora para longe, para um concelho mais longínquo quando tudo parecia correr tão bem? Não sei ao certo, mas desconfio que a lógica do número há-de estar por detrás.
E perto está o dia em que os comboios de passageiros deixarão de circular no Ramal de Cáceres. Mas como, meu Deus? se ainda há bem poucos anos, me lembro de ver aquela gare que mais parecia um terminal de aeroporto de uma capital qualquer, a transbordar de turistas de todas as cores, credos e tamanhos, a saírem aos magotes do TERE em direcção à Alfândega. Como? É simples, o número de passageiros não justifica. O dinheiro não compensa. O governo, via REFER, fecha.
O exemplo último e acabado desta desacreditação, desta derrota moral, deste reconhecer que não há nada a fazer, tive-o recentemente nos Correios. Quando era miúdo, habituei-me a respeitar aquela instituição. Quando se entrava no edifício velho detrás da estação, o cheiro do papel, da tinta fresca dos carimbos e o imponente balcão de madeira escura mais alto que eu, mantinham o devido respeito. Ali naquela casa, penteadinho, caladinho e direitinho. Grande conquista aquela a de chegar a ser amigo do funcionário, na altura o Sr. Salpico, com quem permutava religiosamente os livros de banda desenhada do Astérix e do Lucky Luke. Era amigo e eu fazia gala disso. Ali o negócio era sério, mandavam-se as cartas para todo o lado, pagavam-se as reformas, saldavam-se as contas, fazia-se de tudo um pouco do que era importante. Os carteiros tinham bonés e grandes malas de cabedal cheias de folhas carregadas de sentimentos, saudades e mil e uma coisas. O que faziam, faziam bem e acima de tudo, a tempo e horas.
Hoje, os correios da minha terra estão amputados. Fugiram das casas onde viviam e refugiaram-se nas Juntas de Freguesia. Quem lá trabalha não é o funcionário de toda a vida mas sim alguém que está lá hoje e pode muito bem não estar amanhã. Os carteiros que andam nas ruas são os de sempre, mas andam meio atordoados com esta nova política da sua empresa e não sabem bem o que há-de ser deles. Os Correios estão feridos de morte. Na semana passada, a minha Leonor não parava com a excitação do quinto aniversário que se aproximava a passos largos. Perdida na azáfama da distribuição dos convites, lembrou-se de enviar um à primita Maria que vive em Portalegre, cumprindo a tradição romanesca do envio via CTT. A mãe, confiante na eficiência de outros tempos, não jogou pelo seguro do correio azul. Passou-se a segunda, a terça, a quarta, a quinta, a sexta e se não fosse o telefone, a pobre tinha mesmo perdido a festa. A mais pequena, gritava do alto dos rebeldes 3 anitos, que a culpa foi do carteiro. Pois é, quem dá a cara é que paga, mesmo quando não tem a culpa. A este episódio teríamos de juntar as cartas que demoram semanas a chegar a um destino que está quilómetros aqui ao lado. E a nível nacional é ver as notícias de pilhas e pilhas de correspondência a apodrecer em contentores, vítima da insensatez da política da administração. Estes são bons para ir buscar a morte!
Hão-de ser os números a matar as carreiras da Rodoviária.
Hão-de ser os números a matar as sucursais das seguradoras.
Hão-de ser os números a matar as agências bancárias.
Não há aqui pessoas que justifiquem e a maldita injecção de gente nunca mais há-de chegar.
Pois eu ousei desafiar está lógica da batata e oxalá que como eu muitos. Eu orgulho-me de me ter borrifado para a cidade grande e de ter saltado sem rede para a minha terra. Que se amole a carreira, o ordenado mais alto, a promoção tão desejada. Eu fui, vi e voltei para os meus e para onde me sinto verdadeiramente bem. Fiz como os elefantes que andam quilómetros savana dentro para descansarem naquele lugar único que é o seu.
Ó muito eu me engano ou ainda há-de vir o dia em que teremos todos de nos armar em pequenos Viriatos e fazer algo mais para inverter esta obstinada tendência de desertificação. Parece-me que a coisa só se resolverá à boa maneira portuguesa, de cacete e forquilha na mão. Cá estaremos para ver.
Pois é, meus amigos… por mais que nos custe, temos mesmo de nos render à evidência e reconhecer que para os nossos governantes já não somos o Chico ou o Manel, o Asdrúbal ou a Delfina; para os nossos governantes somos… números e daí não passaremos.
Para eles somos tendências, colunas, linhas e flutuações num mar imenso de estatísticas. Vimos assim a nossa errática existência reduzida à condição de algarismo. Esvaziados de alma, memória e autonomia, corremos o risco de um momento para o outro nos transformarmos num dígito e nada mais.
Os senhores bem nos explicam, gesticulam e argumentam que contra factos não há argumentos. Contra os números, nada a fazer. Os números nunca mentem.
Convencidos de que esta lógica aritmética é o caminho para a salvação, certos de que os automatismos serão a chave do sucesso, esquecem-se de tudo o resto, esquecem-se do mais importante, daquilo que nos faz tão diferentes de tudo resto, de tudo o que a terra carrega com custo à sua superfície.
Assisto assim atónito ao desmembramento de estruturas que aprendi desde sempre a considerar para toda a vida. Enfeitiçados pelo fascínio dos números, os governantes matam a pouco e pouco o interior e com ele o país. Caminhando como sonâmbulos para o abismo, quais ratitos detrás do flautista de Hammelin, embevecidos pela magia desta álgebra maléfica alegam que o que não rende, não justifica e o que não justifica, fecha.
Em vez de corrigir simetrias, de dar incentivos, de fomentar o repovoamento, chamemos-lhe assim, das terras do interior, assistem impávidos e serenos a esta absurda migração que há-de matar de enfarto as já mais que enfartadas metrópoles lusitanas.
Em vez de planear, repensar, distribuir o tecido humano pelo nosso território de uma forma equilibrada e equitativa, lavam as mãos como Pilatos perante a multidão, assobiam e olham para o lado, fingem que não nos ouvem, que não nos vêem, que não existimos. Os números às vezes não falam. Às vezes não dizem nada.
E assim está Portugal: tombado, caído para o litoral norte, litoral centro, litoral sul, como se nada mais houvesse que o mar, como o alterofilista do filme que só exercitava a parte direita do corpo. Disforme. Assim está o nosso país, que qualquer dia de tão debruçado, há-de cair borda fora e deixar-se levar pelas correntes profundas, oceano adentro, para desaparecer para sempre nas fossas abissais.
Deveriam aprender com os colonos idos da velha Europa, de há dois séculos atrás que na urgência de povoar as terras áridas do novo Continente, deram propriedades e ouro e demais regalias nunca antes vistas, para motivar e empurrar os recém chegados para esses territórios inóspitos defendidos até à morte pelos peles-vermelhas autóctones.
Esquecem-se as terras de dentro e deixa-se o flanco exposto à cobiça castelhana. Fossem outros os tempos e era vê-los entrar a toda a força, para tomar o que os nossos desperdiçaram aos abutres.
Bem sei que durante o século passado, assistimos a essa migração quase óbvia das classes desfavorecidas do interior em busca do sonho da cidade, onde as mordomias do mundo moderno estavam mesmo à mão de semear. Num país pobre, analfabeto, cerceado pelo regime, com uma ruralidade agreste a fervilhar nas entranhas, o sonho da urbe era simultaneamente a esperança e a redenção. Compreende-se. O que não percebo é esta migração massiva actual para aquilo que ninguém quer.
E acaba por ser um contrasenso. Quem não está lá está deserto de para lá ir. Quem lá está não vê a hora de sair quanto antes. Porque não podem. As filas intermináveis, a pressão do dia-a-dia, o viver incaracterístico, a poluição, a insegurança, tudo o que é mau e incomoda. Mas vão e ficam. E no meu interior, é vê-los partir de armas e bagagens e qualquer dia, nada restará senão aquilo que existia antes do homem chegar.
Fecham as escolas. Não há meninos. O senhor da Associação de pais queixa-se que cada sala merece um professor. É o desejável. Concordo. O representante do Governo é que não. Porquê? Se o número de alunos não é suficiente, o professor tem de dar para mais de uma turma. Estica-se! A lógica do número!
O posto da GNR deixa de estar aberto de dia e de noite, os militares concentram-se num único posto na sede de concelho. Mas porquê se não era assim? Porque o número de habitantes não justifica tanto militar de vigia. Assim, os que há, circulam no jipe e o serviço acaba por ser o mesmo. A lógica? Do número!
E porque razão há-de o médico espanhol que mora aqui ao lado, que já está ambientado com a população, que já está integrado na comunidade, ter de se ir embora para longe, para um concelho mais longínquo quando tudo parecia correr tão bem? Não sei ao certo, mas desconfio que a lógica do número há-de estar por detrás.
E perto está o dia em que os comboios de passageiros deixarão de circular no Ramal de Cáceres. Mas como, meu Deus? se ainda há bem poucos anos, me lembro de ver aquela gare que mais parecia um terminal de aeroporto de uma capital qualquer, a transbordar de turistas de todas as cores, credos e tamanhos, a saírem aos magotes do TERE em direcção à Alfândega. Como? É simples, o número de passageiros não justifica. O dinheiro não compensa. O governo, via REFER, fecha.
O exemplo último e acabado desta desacreditação, desta derrota moral, deste reconhecer que não há nada a fazer, tive-o recentemente nos Correios. Quando era miúdo, habituei-me a respeitar aquela instituição. Quando se entrava no edifício velho detrás da estação, o cheiro do papel, da tinta fresca dos carimbos e o imponente balcão de madeira escura mais alto que eu, mantinham o devido respeito. Ali naquela casa, penteadinho, caladinho e direitinho. Grande conquista aquela a de chegar a ser amigo do funcionário, na altura o Sr. Salpico, com quem permutava religiosamente os livros de banda desenhada do Astérix e do Lucky Luke. Era amigo e eu fazia gala disso. Ali o negócio era sério, mandavam-se as cartas para todo o lado, pagavam-se as reformas, saldavam-se as contas, fazia-se de tudo um pouco do que era importante. Os carteiros tinham bonés e grandes malas de cabedal cheias de folhas carregadas de sentimentos, saudades e mil e uma coisas. O que faziam, faziam bem e acima de tudo, a tempo e horas.
Hoje, os correios da minha terra estão amputados. Fugiram das casas onde viviam e refugiaram-se nas Juntas de Freguesia. Quem lá trabalha não é o funcionário de toda a vida mas sim alguém que está lá hoje e pode muito bem não estar amanhã. Os carteiros que andam nas ruas são os de sempre, mas andam meio atordoados com esta nova política da sua empresa e não sabem bem o que há-de ser deles. Os Correios estão feridos de morte. Na semana passada, a minha Leonor não parava com a excitação do quinto aniversário que se aproximava a passos largos. Perdida na azáfama da distribuição dos convites, lembrou-se de enviar um à primita Maria que vive em Portalegre, cumprindo a tradição romanesca do envio via CTT. A mãe, confiante na eficiência de outros tempos, não jogou pelo seguro do correio azul. Passou-se a segunda, a terça, a quarta, a quinta, a sexta e se não fosse o telefone, a pobre tinha mesmo perdido a festa. A mais pequena, gritava do alto dos rebeldes 3 anitos, que a culpa foi do carteiro. Pois é, quem dá a cara é que paga, mesmo quando não tem a culpa. A este episódio teríamos de juntar as cartas que demoram semanas a chegar a um destino que está quilómetros aqui ao lado. E a nível nacional é ver as notícias de pilhas e pilhas de correspondência a apodrecer em contentores, vítima da insensatez da política da administração. Estes são bons para ir buscar a morte!
Hão-de ser os números a matar as carreiras da Rodoviária.
Hão-de ser os números a matar as sucursais das seguradoras.
Hão-de ser os números a matar as agências bancárias.
Não há aqui pessoas que justifiquem e a maldita injecção de gente nunca mais há-de chegar.
Pois eu ousei desafiar está lógica da batata e oxalá que como eu muitos. Eu orgulho-me de me ter borrifado para a cidade grande e de ter saltado sem rede para a minha terra. Que se amole a carreira, o ordenado mais alto, a promoção tão desejada. Eu fui, vi e voltei para os meus e para onde me sinto verdadeiramente bem. Fiz como os elefantes que andam quilómetros savana dentro para descansarem naquele lugar único que é o seu.
Ó muito eu me engano ou ainda há-de vir o dia em que teremos todos de nos armar em pequenos Viriatos e fazer algo mais para inverter esta obstinada tendência de desertificação. Parece-me que a coisa só se resolverá à boa maneira portuguesa, de cacete e forquilha na mão. Cá estaremos para ver.
2 Comments:
Parabens, mais uma vez.
Contigo, corro sempre o risco de me repetir, o que me dá uma enorme satisfação.
Um garnde abraço nuno mota
Gosto mais destes desabafos voltados para a "terrinha"! E gostei deste, porque concordo com cada palavra... No entanto, ainda ontem encontrei no livro de visitas da Câmara Velha uma frase muito bonita de uma visitante, que dizia assim:
" Em Marvão, sou uma portuguesa feliz!"
E esta pequena nota bastou para eu ganhar o dia, e me sentir também, uma marvanense feliz!
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