Desabafos de Marvão

O convite de um amigo para desabafar na Rádio Portalegre, todas as quartas, às 7.30h, 10.30h, 13.30h, 17.30h, 23.30h, levou-me também a criar um espaço, na blogosfera, onde possam ficar registados os textos da versão radiofónica. Espero que gostem e já agora, se não for pedir muito, que vos dê que pensar. Um abraço...

A minha foto
Nome:
Localização: Marvão, Alentejo, Portugal

Um rapazinho de Marvão

terça-feira, maio 15, 2007

33º Desabafo – 16 de Maio de 2007 – “Os reveses da fortuna”


Embora não passe de uma ideia, a possibilidade de estar no sítio certo à hora certa agrada a quase toda a gente. Já muito se escreveu e se falou acerca desta contingência que sendo apenas uma mera coincidência ou fruto de uma extraordinariamente rara conjugação astral, tem a apetecível capacidade de mudar, em apenas alguns segundos, a vida de qualquer um. Nos filmes, nos livros e até nos jornais, chegamos a comover-nos com os relatos emocionados de aqueles que passaram em fracções de segundos e por mero acaso, a olhar para a estrada da vida com uma perspectiva completamente diferente. Nos dias que correm e não deixa de ser um sinal dos tempos, estes novos filhos da fortuna nascem muitas vezes pela via do famoso boletim, onde se colocam as cruzinhas com a precisão de quem faz um Arraiolos secular, descobrindo a combinação que lhe escancara as portas da fortuna e do paraíso na terra. Estando no sítio certo à hora certa…

Acerca desta temática, não resisto a partilhar convosco uma história que me aconteceu há muitos, agora que penso nisso, parecem mesmo ser muitos anos, talvez há mais de quinze. Na minha adolescência vivi sempre muito próximo de uns primos paternos que habitavam na minha aldeia. Como tinham casa no Algarve e lugar de sobra no apartamento, convidavam-me sempre para acompanhá-los nas férias, o que me sabia que nem ginjas porque geralmente quando regressavam, em Setembro, era quando avançava a minha família para a mesma Armação de Pêra, fazendo de mim, à mercê da sorte, um veraneante de pleno direito e a tempo inteiro.

Em dada altura e quando chegados à praia, sempre, sempre só depois de almoço e depois de descanso apressado para nos recompormos das longas noites algarvias, apercebemo-nos de um boato que inundou literalmente a praia: dizia-se então que um famosíssimo empresário na área das máquinas de diversão que por acaso era nosso conterrâneo lagóia, tinha perdido, num mergulho mais descuidado, os seus óculos de estimação com armação de avultado valor sendo que na opinião de alguns veraneantes eram banhados a ouro, enquanto outros juravam a pés juntos serem totalmente maciços, amarelinhos, caríssimos!, apesar de nunca sequer os terem visto antes. Mas bem, sabem como é esta história dos boatos, ainda a verdade se está a vestir para sair de casa, já o boato deu duas voltas ao bairro. O que aumentou ainda mais a loucura que se seguiu em toda a praia, foi o facto de fontes seguras terem adiantado que haveria uma recompensa interna, proposta aos dois filhos varões do perdulário progenitor, caso encontrassem o bendito par de gafas. Debaixo dos toldos e dos guarda-sóis, falava-se em cifras astronómicas que fizeram empolar o valor do objecto. Enquanto uns já lhe incrustavam raras pedras preciosas, outros falavam da sua impressionante carga aurífera, sendo que o que ia tornando esta na caça ao tesouro mais louca das últimos anos foi a notícia que a recompensa não estava confinada às paredes do lar mas se estendia a quem os encontrasse, fosse ele quem fosse. O meu grupinho de amigos de Verão não escapou à febre e também ali, deitados nas toalhas à lazeira do sol e de corpos salgados, não se falava noutra coisa. Em longas tardes de debate, desenharam-se no ar os inúmeros cenários possíveis com propostas mais ou menos clarividentes. Definiram-se estratégias, estudaram-se as marés, reconstituíram-se os passos do suspeito antes de entrar na água (afinal ele costumava ficar bem perto de nós), enfim, passou-se o tempo com ânsia e a tarde de trabalho terminava sempre com relatos das enormes jantaradas só de marisco que haveríamos de fazer um dia quando a massa estivesse do nosso lado. Não! Esta não nos podia escapar!

Mas passaram-se os dias e nada. A busca desvaneceu. O assunto de moda na praia mudou e também nós, os últimos resistentes, já pensávamos que os benditos óculos ficariam para sempre perdidos na imensidão azul do fundo do mar, arrastados pelas marés e pelas correntezas profundas, para engrandecer ainda mais os incalculáveis tesouros de Neptuno, presos na gruta de uma sereia ou no casco de um galeão submerso, daqueles que só vemos nos documentários do National Geographic. Até que num fim de tarde desacreditado, quando todas as esperanças se esfumavam e um pôr-do-sol dourado inundava toda a baía, decidi dar um último mergulho solitário antes do regresso tardio a casa, enquanto os demais colegas arrumavam o estojo. Ao caminhar no areal, um dos três banhistas nortenhos que desfrutavam, resistentes e divertidos, das águas tépidas do entardecer, gritou de espanto, deixando escapar algumas vociferações ao pisar um objecto estranho que se encontrava submerso. A princípio, não sei se por tanto tempo já ter passado, não associei os factos, mas assim que ouvi o relato admirado que fez aos seus pares, estranhando uns óculos amarelos ali bem à mão de semear, virei-me quase por instinto e respondi apressadamente que eram meus, agradecendo enquanto recuperava a carga valiosa e saindo de cena quanto antes sem lhes dar tempo de perceber como é que um rapazinho tão jovem ousava usar um modelo tão rebuscado. É claro que à medida que me aproximava da restante pandilha com ar vitorioso, para ser recebido em êxtase absoluto, já ia mentalmente elaborando a minha versão da descoberta, aliás, a única versão, a versão oficial do achado até à revelação de hoje, em que havia um único totalista heróico. Eu próprio me desloquei à residência de férias do senhor e devolvi em mão o seu a seu dono tendo então a devida recompensa ficado em stand by durante diversos dias de expectativa e incertidão para todo o grupo: “saberei agradecer”, disse ele. Até que chegou uma manhã em que alguém se dirigiu a mim e me convidou a chegar perto do retiro balnear do nosso amigo que para espanto meu, retirou de um saco um embrulho quadrangular, de formas suspeitas e a deitar por terra todos os planos por nós elaborados. Agradeci submisso e resignado e regressei tentando disfarçar o ar cabisbaixo que encheu de espanto a minha comitiva que há minutos se tinha despedido de mim com palmadinhas nas costas e de piscadelas de olho. Era um tabuleiro de xadrez. Um tabuleiro de xadrez. Mas não um tabuleiro qualquer, senão um daqueles de fim de colecção, com uns anitos em cima (apesar de impecavelmente novo) como os que se vendiam então na rua do comércio. Desde então, a minha noção de estar no lugar certo à hora certa é um pouco mais assombrada e vaga.

Mas se é assim estar no lado certo, bem pior será certamente experimentar a terrível sensação de estar no local errado, à hora errada e muitos desses relatos têm-me chegado agora através da imprensa escrita. Da ruptura do antigo director do jornal Expresso com o patrão Balsemão, nasceu um semanário Sol que acalentou válidas expectativas mas se revelou uma difusa versão “Correio da Manhã” do semanário de referência. Ainda assim, apresentou algumas inovações dignas de realce, uma das quais confesso, me passou ao lado nos primeiros números e tem por título “Conversas na prisão”.

Aceito que possa ser preconceito, mas a verdade é que desde criança sempre pensei que só ia preso quem fosse de facto muito, muito mau e merecia a sorte de se ver privado do valor absoluto da liberdade. Nestas “conversas na prisão” tenho-me apercebido que nem sempre é assim, tenho aprendido que muitas vezes, a linha que separa a legalidade da marginalidade é muito ténue e que basta um golpe trágico do destino para fazer até o mais exemplar cidadão cair na desgraça de ver ruir à sua volta o que levou anos de árduo sacrifício a construir.

Bem sei que muitos dos que se vêm ali retratados nasceram com má estrela e não conheceram na vida outro caminho que não o fora-da-lei: foram crianças maltratadas e abusadas pelos pais, obrigadas a roubar e a lutar para sobreviver, ou até por vezes, pais e mães cativos da sôfrega dependência dos seus filhos, impelidos na sua voluntária paternidade a darem o que tinham e não tinham, a colaborarem como correios ou passadores para poderem angariar os fundos que alimentavam a sua própria desgraça. Desses, infelizmente, já todos ouvimos quase tudo.

Mas as que a mim mais me impressionaram, foram precisamente as histórias dos que viram por erros tantas vezes momentâneos, a roda da sua vida dar uma volta de 360º. Recordo a história do professor de aeróbica e do amigo que mesmo sem consumirem álcool ou drogas, levaram a diversão de um aniversário ao limite de se vestirem de agentes da autoridade em rusga informal por entre as prostitutas das ruas de Lisboa e acabaram por se exceder na encenação trágico-cómica que roçou o abuso e a extorsão e os engavetou de vez. Lembro também a história do cidadão pacato, perseguido pela cega teimosia de um outro, de maiores proporções e enorme aversão, que culminou com um confronto nocturno de trágico desfecho quando a navalha tantas vezes usada para um petisco com amigos ou para um lanche informal, perfurou mortalmente o coração do Golias, num golpe certeiro e movido pelo medo e pela raiva, que colocou o frágil autor atrás das grades.

Mas de todas os relatos, impressionou-me sobremaneira um recentemente publicado, de um electricista da Figueira da Foz que num acidente num entroncamento vitimou dois peões, um dos quais viria a falecer no hospital. Apesar de ainda hoje defender que foi uma falha mecânica que esteve na origem da ocorrência, nunca o conseguiu provar em tribunal e acabou ele por ser traído por dois copos de vinho e um meio Whisky, que originaram os 0,71 l/g detectados no teste de alcoolemia e se traduziram numa pena de dois anos e meio de prisão por homicídio por negligência. Estar no sítio errado, no momento errado pode significar isto mesmo, que duas ou três imperiais bebidas de relance com um amigo que não se vê há muito, podem mesmo ser veneno fatal que nos pode matar ou marcar para sempre. Neste caso concreto, o visado teve a coragem de, assim que teve conhecimento que o seu recurso não iria ser atendido, se ir entregar à prisão que lhe parecia mais conveniente, depois da análise exaustiva de quase todas elas e porque nunca teve inibição real de conduzir.

Passou assim, num breve espaço de tempo, de respeitado pai de família a assassino a abater, a ser a escória, um pária, um condenado ao ostracismo.

E o que mais me preocupa no final é que, seja por ciúme ou vingança, por ódio ou excesso de zelo, por descuido ou inadvertência, caminhemos tantas vezes no limite de tudo sem que nos apercebamos que às vezes, o perigo espreita mesmo ao virar da esquina e a facilidade com que a sorte pode mudar, para sempre.