Desabafos de Marvão

O convite de um amigo para desabafar na Rádio Portalegre, todas as quartas, às 7.30h, 10.30h, 13.30h, 17.30h, 23.30h, levou-me também a criar um espaço, na blogosfera, onde possam ficar registados os textos da versão radiofónica. Espero que gostem e já agora, se não for pedir muito, que vos dê que pensar. Um abraço...

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Um rapazinho de Marvão

terça-feira, maio 01, 2007

31º Desabafo – 2 de Maio de 2007 – À procura de nós próprios


Passamos pouco tempo connosco.

Falamos pouco com nós próprios.

Vivemos a correr e nesse vai-vem acelerado mal damos pela nossa existência.

Quando chega ao fim do dia e nos deitamos, assim que pousamos a cabeça na almofada, sucumbimos atordoados ao cansaço acumulado que descarregamos num sono profundo. Dormimos a correr, para que possamos acordar cedo e temos com frequência que fintar as insónias inconvenientes que espreitam sempre oportunas, por uma ida à casa de banho a meio da noite, para nos estragar o dito repouso. É nessa inesperada cilada nocturna que muitas vezes temos de enfrentar as preocupações que fingimos esquecidas durante o dia. De manhã, assim que toca o despertador e mal abrimos os olhos para receber a primeira luz, já a cabeça leva meio organizada a nossa agenda, dando-nos instruções para o resto da jornada, para que nada falhe.

O relógio não perdoa e as primeiras horas da manhã são tudo menos fáceis. O cenário é sempre mais preocupante para quem tem filhos pequenos e se forem mais que dois, a ajuda suplementar é sempre mais que aconselhada. Entre acordá-los, lavá-los e vesti-los, entre o pequeno-almoço e a repetição das mesmas tarefas connosco, gastamos de rajada grande parte das reservas de energia acumuladas para todo o dia.

Chegamos aos empregos cansados, muitas vezes sem vontade de aturar o chefe e os colegas, os funcionários e os clientes e levamos a jornada de empreitada para ver se nos despachamos mais depressa mas, nem por isso.

Dali corremos para casa com paragem obrigatória para apanhar a descendência no Jardim-Escola, Infantário ou Ludoteca mais à mão. Quando ali chegados, iniciamos nova ronda de trabalhos acrescidos: as senhoras com a preparação dos jantares, os maridos que chegam sempre um pouco mais tarde, apoiando nos deveres ou em arrumações de última hora e isto se forem o suficientemente prestáveis.

Nas viagens de carro não falamos porque o rádio não nos deixa. Às refeições não nos ouvimos uns aos outros porque a televisão que já nos invadiu os quartos, reina à muito mais tempo nas nossas salas e cozinhas. No serão, mergulhamos cada um nos seus entreténs: o homem no jornal ou na bola, a senhora na novela ou no trabalho manual, o petiz ou a princesa no Nenuco ou na Playstation e no encerramento dos trabalhos, é virar e dar outra vez.

Por vezes vivemos dias inteiros sem olharmos bem nos olhos uns dos outros.

Quase sempre o que interessa é o tamanho do plasma na sala, a gama da viatura, os requisitos do portátil, o destino de férias, a escola de línguas, as toilettes e o chalet. Mas quantos de nós não terão ainda ouvido da boca de um amigo, de um vizinho, de um familiar ao qual a saúde ou a sorte ou as duas pregaram uma partida e esteve por momentos mais para lá do que para cá, que passou desde então a ver a vida com outros olhos, a prestar atenção aos pequenos pormenores até aí insignificantes: o som e o cheiro da chuva a cair na terra batida, a respeitosa imensidão do mar, o canto divino do rouxinol (como o que vive agora junto a minha casa), um pôr-do-sol numa tarde de Verão, a luz do luar numa noite fria de Inverno, o frescura de um gelado comido num relvado debaixo de uma árvore em Agosto, o sorriso de quem nos ama.

Lamechices, dirão alguns. Certamente, mas até ver. Também o outro dizia que a todos chega o tempo de acreditar em Deus: a diferença é que uns acreditam a vida inteira, outros só quando a vêm a abalar, mas mais cedo ou mais tarde, todos lá vão bater.

Já estamos em Maio. Por falar nisso e para os católicos, Maio é o mês dedicado a Maria. Porque vem a propósito, recordo que há cinco anos atrás, precisamente por estas alturas, fui a Fátima a pé, sozinho, com uma mochila às costas. Não fui pagar uma promessa. Não fui cumprir um desígnio específico. Não fui numa missão negocial. Fui sobretudo em sinal de agradecimento e de minha livre e espontânea vontade.

Sei que para muitos este é um assunto controverso. Quem não acredita sentir-se-á certamente tentado a desligar da conversa, mas penso que nestas questões de fé, deve sobretudo prevalecer o respeito. Para mim, a fé está muito para além da existência da própria divindade. Há muito que defendo que a essência da fé está dentro do homem e potencia-se na sua capacidade de acreditar e de se superar.

Para Fátima pois, de sacola às costas, comendo onde calhava e dormindo onde era possível. Nada tenho contra os peregrinos que avançam em grupo, que cantam, falam, convivem e rezam durante o percurso. Mas esta foi para mim, sobretudo uma jornada de silêncio e de busca, de pensamento e de descoberta interior. Voltando ao princípio da nossa conversa, sobre o tempo que passamos connosco, foi então que descobri a importância desse diálogo. Caminhando durante todo o dia, durante quatro dias, das 9 às 18h, passei a minha existência a pente fino. Sem um rádio, sem uma companhia, nada me restava senão esse ilustre desconhecido que vivia em mim e muito alcatrão pela frente.

Costuma dizer-se que quando corremos um grande perigo, vemos a nossa vida passar-nos à frente em fracções de segundo. Nesse caso, foi uma degustação mais lenta, de muitas, muitas horas de recordações, conjecturas e suposições, desabafos, argumentações e conclusões. Sozinho nessa estrada onde ninguém me conhecia, longe de tudo e de todos, distante do conforto e do aconchego do lar, mergulhei em mim e quis saber mais.

Sei que foi um dos desafios mais arrojados a que me propus, mas a sensação de paz e o alívio do dever cumprido, no final, tranquilizaram-me. Sentado na imensa escadaria do Santuário, admirando um pôr-do-sol dourado que enchia todo a Cova da Iria de luz, pensei que poderia ficar ali para sempre.

No final desta missão, olhei para dentro e vi-me a mim. A recompensa foi conhecer-me um pouco mais e talvez melhor do que nunca.

Aprendi então uma lição que me esforço todos os dias por não desaprender: que é preciso fazer um esforço diário para não perdermos o fio condutor que nos leva a nós próprios.

É por isso que é tão importante fazermos um exame de consciência ao nosso dia antes de dormirmos, revendo o que fizemos de bom e onde estivemos pior. É por isso que é tão recomendável que programemos o nosso dia tranquilamente, antes de nos levantarmos, para que nos possamos superar. É por isso que devemos fazer umas caminhadas solitárias, para arrumar o sótão e prepararmos a jornada.

Por falar nisso, caro amigo(a), há quanto tempo não tem uma conversa consigo?

1 Comments:

Blogger Catarina said...

ao ler este post lembrei-me do provérbio africano que o Al Gore fala no "A verdade inconveniente" (que recomendo, é muito bom!): “When you pray, move your feet."

9:05 da tarde  

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