Desabafos de Marvão

O convite de um amigo para desabafar na Rádio Portalegre, todas as quartas, às 7.30h, 10.30h, 13.30h, 17.30h, 23.30h, levou-me também a criar um espaço, na blogosfera, onde possam ficar registados os textos da versão radiofónica. Espero que gostem e já agora, se não for pedir muito, que vos dê que pensar. Um abraço...

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Localização: Marvão, Alentejo, Portugal

Um rapazinho de Marvão

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

21º Desabafo – 21 de Fevereiro de 2007 – “Memórias da ferrovia”

Tal como a maioria dos portugueses que acompanharam na televisão o desenrolar das buscas desesperadas por sobreviventes, também eu vivi com emoção o episódio da tragédia do Tua. O aluimento de terras que lançou a carruagem numa descida vertiginosa de 60 metros, roubou a vida de três funcionários da CP, dois deles com menos de 35 anos, entrando directamente para a lista dos mais negros na história das caminhos-de-ferro portugueses.

A mim, para além da pena irreparável de saber que há vidas humanas que se perderam, famílias inteiras para sempre destroçadas, custou-me particularmente ver a automotora inanimada, caída junto às águas do rio, ferida de morte, prostrada num lânguido estertor do qual ninguém a poderá jamais salvar. Custou-me porque aquela viatura em particular, aquele comboio único em que a carruagem contém na sua estrutura a máquina que a faz deslocar, faz parte da minha vida.

Esta ligação afectiva existe desde que me lembro. Sendo nascido numa terra de comboios e maquinistas, descendente de funcionários e grande amigo de actuais efectivos, aprendi desde miúdo, a amar e a conhecer de perto o fascínio destes enormes cavalos de ferro. Ficou tudo entranhado de tal maneira que tremo sempre de saudável saudade quando oiço o inimitável som do apito do chefe da estação que coloca toda a composição em marcha. As intermináveis linhas cinzentas, verdadeiras artérias de aço por onde deslizavam as máquinas, foram palco de longas tardes de brincadeira em jogos de equilíbrio, a tentar saber qual de nós seria capaz de fazer mais metros sem ter de pôr o pé no chão. Embora na altura não fossem muitas, de vez em quando lá guardávamos uma moeda que colocávamos estrategicamente sob a linha para que a máquina se encarregasse de a devidamente espalmar. Era bonito de se ver, sim senhor. Ainda guardo algumas delas como troféus de um tempo perdido. E se tivesse que escolher os cheiros que marcaram a minha vida, o inimitável odor a querosene das travessas escuras que marcam o compasso dos carris seria certamente um deles.

Se a coisa já era forte, com a ida para Lisboa em missão universitária, virou paixão. Durante esses anos, o comboio e sobretudo a automotora, não uma como a do acidente do Tua mas uma sua prima, das mais antigas, foram o meu principal meio de locomoção e nestas coisas, de passarmos tantas horas juntos, acabámos por nos afeiçoar um ao outro.

O comboio é já por si um meio de transporte fabuloso, com inúmeras potencialidades e pouco ou nenhum inconveniente. Assim de repente, não consigo imaginar um outro meio que nos liberte da mordaça de ter que estar presos com um cinto que se diz de segurança ou com um qualquer capacete enfiado cabeça abaixo. No comboio pode-se circular, esticar as pernas, ir ao bar comer uma sandes e beber uma mini ou até ir à casa de banho quando em andamento. Certa noite de domingo, caminho da capital, em amena cavaqueira com os meus companheiros de viagem, uns polícias, outros bancários, alguns militares ou estudantes como eu, alguém se lembrou que o que vinha mesmo então a calhar era um chouriço assado e um copinho do bom tinto. As bagagens estavam mesmo ali ao lado a ouvir a conversa, todas elas bem recheadas com o comerzinho da terra que nos haveria de dar ânimo durante a semana e a coisa não se fez por menos: de uma saltou o magnífico enchido, a navalha de bolso cortou o pãozinho caseiro, outro ofereceu de vontade o tal tinto e até o assadorzinho de barro que seria oferta desejada para o chefe de serviço acabou por ser estreada antes de tempo, depois de regada pela oportuna garrafinha de álcool, utilizada para fim bem diferente do medicinal previsto inicialmente. Meus amigos, ele há coisas do arco da velha, mas esta de comer chouriços assados em pleno andamento é regalo que já ninguém me tira.

Agora que a CP pensa primeiro no retorno económico e só depois na necessidade das populações e no interesse dos seus passageiros, agora que os seus manda-chuvas aproveitam toda e qualquer desgraça para colocarem termo os ramais menos rentáveis, faço aqui a elegia deste meio de transporte de eleição e partilho convosco histórias que adensam a sua aura mística.

A automotora em que eu seguia até à Torre das Vargens ou Abrantes tinha a particularidade de colocar qualquer um a dormir em minutos. Não sei se era do calorzinho do motor ou do cheiro a gasóleo queimado mas aquele balanço gostoso que fazia lembrar o colinho de nossa mãe deitava por terra a esperança de permanecer acordado mais de dez minutos. Até dava gosto! Se algum dia as insónias me atormentarem, já sei o remédio santo.

Certa manhã de regresso a casa para o fim-de-semana, já na parte final do percurso e antes de voltar a adormecer, reparei que era mais uma vez o único passageiro. Caí no sono e acordei sobressaltado com os gritos da tripulação. Estávamos parados. Pela janela vi o maquinista e o revisor a correrem esbaforidos pela tapada fora. Ainda meio atordoado, com o coração a latejar no pescoço, dei um salto que me pôs de pé e fiz um esforço para perceber o que se passava ali. Só podia haver uma explicação: a coisa ia explodir em segundos sabe-se lá porquê e a rapaziada não se lembrou de mim, fugiu sem avisar e prontos, estava frito, ali acabava tudo. Ainda juntei forças para correr para a porta e ao voltar a olhar pela vidraça para ver o adianto dos outros fugitivos reparei que levavam sacos de plástico na mão. Sacos de plástico? Havia ali qualquer coisa que não jogava bem porque reparei então também que iam os dois a rir à gargalhada. O susto passou quando percebi que afinal não era uma fuga mas uma perseguição e o motivo eram apenas dois filhotes de perdiz mais incautos que atravessaram a linha e despertaram a cobiça alheia que já os estava mais a ver feitos em canjinha.

Recordo também a manhã de azáfama quando uma súbita avaria entre a Torre das Vargens e Abrantes colocou em risco a minha presença no exame que tinha originado a viagem. Um veio qualquer de tracção partiu e nem os esforços dos funcionários e passageiros conseguiram fazer o que fosse para remediar a coisa. Engasgada e aos soluços, parecia impossível sair dali. Depois de subirem ao poste mais próximo para pedir auxílio com recurso a um telefone móvel de mala (na altura ainda não havia telemóveis!), os funcionários começaram a colocar ao longo dos carris pequenos fulminantes de aviso com distâncias certas compassadas para que a máquina que vinha em socorro fosse avisada atempadamente. Enquanto esperávamos, continuaram os trabalhos de recuperação que foram surpreendentemente satisfatórios. Afinal a coisa já mexia mas o tempo era escasso. Reiniciamos a marcha depois de informada a central e arrancámos ao som das palmas da assistência mas se queríamos apanhar o Intercidades a tempo em Abrantes teríamos que iniciar o contra-relógio sem mais. E foi assim, entre soluços e estalidos que prosseguimos viajem numa epopeia a fazer lembrar uma caravana do velho Oeste em pleno ataque dos nativos. Delicioso!

São pequenas histórias de um meio de transporte nobre e que é parte da nossa memória, um meio seguro mas de baixa auto-estima nestes tempos de automóveis, um meio que é preciso elogiar, recuperar e enaltecer.

Se nunca teve oportunidade ou já se esqueceu como é, aproveite um dia destes e faça uma pequena viajem de comboio pelo prazer de descobrir ou apenas para matar saudades. Vai ver que bom que é ver o filme da paisagem passar entre os quadradinhos das janelas. Bom passeio!