11º Desabafo - 13 de Dezembro de 2006 – É Natal…
Já que tem mesmo de ser e antes que seja mais difícil, antes que o tempo avance e nos apanhe a todos já bem imbuídos desse espírito que agora todos falam: cá vai a crónica do Natal.
Para mim, nenhuma outra altura do ano personifica tão bem a palavra agridoce, aquela que ao mesmo tempo tem um travo amargo e adocicado, a que é capaz de encerrar em si o veneno e o seu miraculoso antídoto.
O Natal roubaram-mo quando tinha apenas sete anos e um trágico e infeliz golpe do destino se aproveitou para levar a vida de um tio, com quem convivia diariamente desde sempre, no preciso dia em que se comemorava o nascimento do menino. Curiosamente chamava-se Lázaro, mas este, ao contrário do seu homónimo no relato bíblico, jamais voltou pelo seu pé ao mundo dos vivos. Eu sei que muitos de nós cometemos vezes de mais o erro de considerar que as crianças não percebem, não prestam atenção, não captam aquilo que por vezes lhe queremos esconder. Pois esse é o meu bom exemplo do contrário. Apesar de ter então tão poucos anos, e apesar ainda de já tantos terem passado, sei que consigo ainda hoje (sem recurso a qualquer tipo de transe ou manigância esotérica) reconstituir quase ao detalhe, a força demolidora do desnorte e da dor que se seguiu à notícia que chegou por telefone, minutos antes de partirmos para mais uma visita no então Sanatório de Portalegre. Lembro-me dos rostos incrédulos, do choro, da desorientação e de mim, perdido no meio de todo aquele corredor de aflição, olhando para todos à procura de um refúgio, de um porto seguro onde me pudesse abrigar dessa violenta tempestade de afectos que eu nunca antes tinha experimentado. Na noite anterior, já em silêncio e de televisão desligada propositadamente por respeito à fragilidade da situação, escondi-me do mundo num livro de detectives e mistérios chamado “Fantasmas da meia-noite à uma”. Nunca mais o vi.
A partir daí, o Natal dissipou-se, esfumou-se, passou a ser coisa dos outros. E eu, que gostava tanto de subir às rochas para lhe roubar o musgo ainda húmido do orvalho gelado das madrugadas frias de Dezembro; eu que contava os dias para acompanhar o meu pai nessas expedições mato adentro, de machadinha na mão, em busca do pinheiro perfeito; eu que não podia esperar mais pelo dia em que finalmente resgatávamos da despensa a caixa velha de papelão onde hibernavam as figuras do presépio; eu que tanto me divertia a inventar rios das pratas velhas dos chocolates; eu que sabia tão bem como colocar estrategicamente o pastor que ficara maneta num acidente dum Natal anterior, de forma a não se ver a falta da mãozita de loiça… eu, de repente… fiquei sem Natal.
Mas nunca mais me saiu de vista.
Reconquistei-o já depois de casar, na casita de Marvão, quando fizemos pela primeira vez a NOSSA árvore de Natal e a ficamos a admirar, agarradinhos, emocionados no escuro da noite, a ver as luzinhas todas a dançar à nossa volta, com um “jingle bells” de instrumental manhoso a sair titubeante da caixinha de música da loja dos 300 (nessa altura ainda não havia a dos chineses!).
Com a chegada da filhota, o Natal potenciou-se ao expoente máximo e atingiu a sua plenitude mágica. Cresceu e ficou imponente… Iluminou-se e chega agora a todo o mundo como nos reclames da Coca-Cola.
O Natal é a festa da família. No Natal juntamo-nos todos à mesma mesa, comemos demais, bebemos a mais, falamos muito a mais e isso é bom. No Natal fazemos loucuras. No Natal, o país pára, os políticos dão tréguas aos seus pares, os centros comerciais enchem-se e as carteiras esvaziam-se. No Natal, os talões dos multibancos e os saldos dos cartões de crédito não desaparecem mas trazem sempre um sinal de menos antes dos números. Chamem-me o que quiserem, mas eu acredito no Natal. Sim, eu sei, mas acredito! Pode ser dos filmes, pode ser uma banha da cobra qualquer que me venderam mas eu comprei e gosto dela. Há a tal coisa no ar, as caras parecem diferentes, as pessoas ficam mais amigas. No Natal há as azevias, os bolos-reis, as figuritas espanholas de maçapão, o torrão de chocolate e Alicante, as lareiras, as meias nas chaminés, a roupa nova e os perfumes, a alegria louca das crianças em luta com os embrulhos coloridos à procura do seu recheio, muitos doces, o tal concerto do Plácido Domingo, do Carreras e do Pavarotti (e não, não é o burro da Júlio Pinheiro, é o outro, o italiano, o gordito de barbas) pela milésima vez na televisão. No Natal revemos os filmes, os discos e as músicas de Natal que revisitamos com gosto todos os anos e que já fazem parte de nós. Neste Natal, eu vi o brilho de milhares de luzes da árvore que se diz mais alta da Europa, no reflexo dos olhos encantados da minha filha. No Natal vamos à missa do galo dar um beijinho na perninha do menino Jesus e aquecemo-nos no lume junto à porta da Igreja, antes de virmos para casa quentinhos por dentro e por fora. Junto a esse lume, cujos madeiros antes eram recolhidos por novos e velhos em camionetas emprestadas e hoje são apanhados pelos funcionários das Juntas de Freguesia, juntam-se depois os jovens solteiros madrugada dentro, num convívio que já é tradição, e assam chouriços e cacholeiras regadas com vinho e outras mistelas até ao romper de aurora. No outro dia, horas depois, à mesa do almoço do dia de Natal, esses jovens parecem zombies acabadinhos de desenterrar, enjoados e com grandes olheiras, mas os outros adultos não se zangam com eles porque é Natal. No Natal somos todos pessoas melhores porque queremos ser pessoas melhores e prontos, já está!
Mas se o Natal é uma festa de família, no Natal lembramos também aqueles que não a têm, aqueles que não têm Natal porque não podem. Os que trabalham nessa noite, os que não têm dinheiro para o ter, os que sofrem, os que estão doentes, os que vivem nas ruas que os outros pisam apenas, os que são marginalizados, aqueles que não usam isso do Natal, os que estão vacinados contra o Natal, aqueles para quem o dia 25 de Dezembro em nada difere do 25 de Março ou do 25 de Agosto. É um 25 igual a tantos outros. Para esses o Natal não existe. No Natal, lembramos aqueles a quem nunca mais vamos poder ver neste mundo. Lembramos aqueles que nunca mais vamos poder abraçar, beijar, cheirar, tocar ou dizer: amo-te tanto. No Natal apercebemo-nos que há muita coisa que nos falta, que somos seres imperfeitos, que a felicidade é intangível e que no fundo, a nossa grande missão não é viver… é sobreviver.
É por isso que o Natal é um pau de dois bicos. É por isso que temos de desconfiar só um bocadinho dele. O Natal é uma moeda: tem duas caras.
Para mim, a verdade do Natal está naquela história tão linda e tantas vezes contada do carpinteiro da Nazaré, província da Galileia, hoje norte da Palestina, da sua mulher e do seu rebento que segundo as sagradas escrituras, nasceu pobrezinho numa gruta fria onde só o bafo dos animais o podia aquecer, para nos salvar. Sendo ele a figura mais importante da história, aquele que marcou para sempre uma viragem completa no curso dos tempos vindouros, sendo o próprio filho de Deus e o Salvador, poderia ter à sua mercê palácios e terras, as maiores mordomias e riquezas que o mundo tinha para dar. Preferiu antes dar uma tremenda lição de humanismo e humildade, ao escolher entrar no mundo como o mais comum dos comuns dos mortais. As voltas que o nosso mundo dá: hoje, o Vaticano, a sede da Igreja Apostólica Romana, é um estado independente cuja economia é baseada na captação de donativos das comunidades eclesiais pertencentes à Igreja no mundo inteiro; não havendo outro lugar à superfície da terra com tanto valor artístico e intelectual concentrado como o Arquivo Secreto do Vaticano, a Biblioteca Apostólica Vaticana, e os acervos de arte (pintura, escultura e arte sacra) das igrejas romanas. Só o palácio onde reside o Papa tem cinco mil quartos, duzentas salas de espera, vinte e dois pátios, cem gabinetes de leitura, trezentas casas de banho e dezenas de outras dependências destinadas a recepções diplomáticas. Com isto digo tudo e tudo o que demais dissesse seria demais.
Como é Natal e no Natal a gente pede o que quer, o que eu gostava era que o dinheiro, o ouro e demais valores incalculáveis que dormem nesses cofres de Roma, fizessem como a água no seu ciclo e se evaporassem, se condensassem no céu lá bem alto e chovessem ininterruptamente em África e em todos os sítios do mundo onde fazem tanta falta e seriam tão bem aplicados. Pode parecer naif e corriqueiro mas quando se pede, pede-se o que se quer e como agora é Natal, é isto que eu quero: que essa massa se aplicasse na erradicação da fome, na pesquisa e investigação de vacinas para as doenças e problemas que afligem o mundo, que fosse usado para dirimir o sofrimento e aproximar a humanidade, que nesta altura e por culpa do Natal, se apercebe de como é efémera, de como é falível e de que o mais importante mesmo, é ser feliz.
Muito obrigado pela vossa atenção e já agora: Feliz Natal!
Já que tem mesmo de ser e antes que seja mais difícil, antes que o tempo avance e nos apanhe a todos já bem imbuídos desse espírito que agora todos falam: cá vai a crónica do Natal.
Para mim, nenhuma outra altura do ano personifica tão bem a palavra agridoce, aquela que ao mesmo tempo tem um travo amargo e adocicado, a que é capaz de encerrar em si o veneno e o seu miraculoso antídoto.
O Natal roubaram-mo quando tinha apenas sete anos e um trágico e infeliz golpe do destino se aproveitou para levar a vida de um tio, com quem convivia diariamente desde sempre, no preciso dia em que se comemorava o nascimento do menino. Curiosamente chamava-se Lázaro, mas este, ao contrário do seu homónimo no relato bíblico, jamais voltou pelo seu pé ao mundo dos vivos. Eu sei que muitos de nós cometemos vezes de mais o erro de considerar que as crianças não percebem, não prestam atenção, não captam aquilo que por vezes lhe queremos esconder. Pois esse é o meu bom exemplo do contrário. Apesar de ter então tão poucos anos, e apesar ainda de já tantos terem passado, sei que consigo ainda hoje (sem recurso a qualquer tipo de transe ou manigância esotérica) reconstituir quase ao detalhe, a força demolidora do desnorte e da dor que se seguiu à notícia que chegou por telefone, minutos antes de partirmos para mais uma visita no então Sanatório de Portalegre. Lembro-me dos rostos incrédulos, do choro, da desorientação e de mim, perdido no meio de todo aquele corredor de aflição, olhando para todos à procura de um refúgio, de um porto seguro onde me pudesse abrigar dessa violenta tempestade de afectos que eu nunca antes tinha experimentado. Na noite anterior, já em silêncio e de televisão desligada propositadamente por respeito à fragilidade da situação, escondi-me do mundo num livro de detectives e mistérios chamado “Fantasmas da meia-noite à uma”. Nunca mais o vi.
A partir daí, o Natal dissipou-se, esfumou-se, passou a ser coisa dos outros. E eu, que gostava tanto de subir às rochas para lhe roubar o musgo ainda húmido do orvalho gelado das madrugadas frias de Dezembro; eu que contava os dias para acompanhar o meu pai nessas expedições mato adentro, de machadinha na mão, em busca do pinheiro perfeito; eu que não podia esperar mais pelo dia em que finalmente resgatávamos da despensa a caixa velha de papelão onde hibernavam as figuras do presépio; eu que tanto me divertia a inventar rios das pratas velhas dos chocolates; eu que sabia tão bem como colocar estrategicamente o pastor que ficara maneta num acidente dum Natal anterior, de forma a não se ver a falta da mãozita de loiça… eu, de repente… fiquei sem Natal.
Mas nunca mais me saiu de vista.
Reconquistei-o já depois de casar, na casita de Marvão, quando fizemos pela primeira vez a NOSSA árvore de Natal e a ficamos a admirar, agarradinhos, emocionados no escuro da noite, a ver as luzinhas todas a dançar à nossa volta, com um “jingle bells” de instrumental manhoso a sair titubeante da caixinha de música da loja dos 300 (nessa altura ainda não havia a dos chineses!).
Com a chegada da filhota, o Natal potenciou-se ao expoente máximo e atingiu a sua plenitude mágica. Cresceu e ficou imponente… Iluminou-se e chega agora a todo o mundo como nos reclames da Coca-Cola.
O Natal é a festa da família. No Natal juntamo-nos todos à mesma mesa, comemos demais, bebemos a mais, falamos muito a mais e isso é bom. No Natal fazemos loucuras. No Natal, o país pára, os políticos dão tréguas aos seus pares, os centros comerciais enchem-se e as carteiras esvaziam-se. No Natal, os talões dos multibancos e os saldos dos cartões de crédito não desaparecem mas trazem sempre um sinal de menos antes dos números. Chamem-me o que quiserem, mas eu acredito no Natal. Sim, eu sei, mas acredito! Pode ser dos filmes, pode ser uma banha da cobra qualquer que me venderam mas eu comprei e gosto dela. Há a tal coisa no ar, as caras parecem diferentes, as pessoas ficam mais amigas. No Natal há as azevias, os bolos-reis, as figuritas espanholas de maçapão, o torrão de chocolate e Alicante, as lareiras, as meias nas chaminés, a roupa nova e os perfumes, a alegria louca das crianças em luta com os embrulhos coloridos à procura do seu recheio, muitos doces, o tal concerto do Plácido Domingo, do Carreras e do Pavarotti (e não, não é o burro da Júlio Pinheiro, é o outro, o italiano, o gordito de barbas) pela milésima vez na televisão. No Natal revemos os filmes, os discos e as músicas de Natal que revisitamos com gosto todos os anos e que já fazem parte de nós. Neste Natal, eu vi o brilho de milhares de luzes da árvore que se diz mais alta da Europa, no reflexo dos olhos encantados da minha filha. No Natal vamos à missa do galo dar um beijinho na perninha do menino Jesus e aquecemo-nos no lume junto à porta da Igreja, antes de virmos para casa quentinhos por dentro e por fora. Junto a esse lume, cujos madeiros antes eram recolhidos por novos e velhos em camionetas emprestadas e hoje são apanhados pelos funcionários das Juntas de Freguesia, juntam-se depois os jovens solteiros madrugada dentro, num convívio que já é tradição, e assam chouriços e cacholeiras regadas com vinho e outras mistelas até ao romper de aurora. No outro dia, horas depois, à mesa do almoço do dia de Natal, esses jovens parecem zombies acabadinhos de desenterrar, enjoados e com grandes olheiras, mas os outros adultos não se zangam com eles porque é Natal. No Natal somos todos pessoas melhores porque queremos ser pessoas melhores e prontos, já está!
Mas se o Natal é uma festa de família, no Natal lembramos também aqueles que não a têm, aqueles que não têm Natal porque não podem. Os que trabalham nessa noite, os que não têm dinheiro para o ter, os que sofrem, os que estão doentes, os que vivem nas ruas que os outros pisam apenas, os que são marginalizados, aqueles que não usam isso do Natal, os que estão vacinados contra o Natal, aqueles para quem o dia 25 de Dezembro em nada difere do 25 de Março ou do 25 de Agosto. É um 25 igual a tantos outros. Para esses o Natal não existe. No Natal, lembramos aqueles a quem nunca mais vamos poder ver neste mundo. Lembramos aqueles que nunca mais vamos poder abraçar, beijar, cheirar, tocar ou dizer: amo-te tanto. No Natal apercebemo-nos que há muita coisa que nos falta, que somos seres imperfeitos, que a felicidade é intangível e que no fundo, a nossa grande missão não é viver… é sobreviver.
É por isso que o Natal é um pau de dois bicos. É por isso que temos de desconfiar só um bocadinho dele. O Natal é uma moeda: tem duas caras.
Para mim, a verdade do Natal está naquela história tão linda e tantas vezes contada do carpinteiro da Nazaré, província da Galileia, hoje norte da Palestina, da sua mulher e do seu rebento que segundo as sagradas escrituras, nasceu pobrezinho numa gruta fria onde só o bafo dos animais o podia aquecer, para nos salvar. Sendo ele a figura mais importante da história, aquele que marcou para sempre uma viragem completa no curso dos tempos vindouros, sendo o próprio filho de Deus e o Salvador, poderia ter à sua mercê palácios e terras, as maiores mordomias e riquezas que o mundo tinha para dar. Preferiu antes dar uma tremenda lição de humanismo e humildade, ao escolher entrar no mundo como o mais comum dos comuns dos mortais. As voltas que o nosso mundo dá: hoje, o Vaticano, a sede da Igreja Apostólica Romana, é um estado independente cuja economia é baseada na captação de donativos das comunidades eclesiais pertencentes à Igreja no mundo inteiro; não havendo outro lugar à superfície da terra com tanto valor artístico e intelectual concentrado como o Arquivo Secreto do Vaticano, a Biblioteca Apostólica Vaticana, e os acervos de arte (pintura, escultura e arte sacra) das igrejas romanas. Só o palácio onde reside o Papa tem cinco mil quartos, duzentas salas de espera, vinte e dois pátios, cem gabinetes de leitura, trezentas casas de banho e dezenas de outras dependências destinadas a recepções diplomáticas. Com isto digo tudo e tudo o que demais dissesse seria demais.
Como é Natal e no Natal a gente pede o que quer, o que eu gostava era que o dinheiro, o ouro e demais valores incalculáveis que dormem nesses cofres de Roma, fizessem como a água no seu ciclo e se evaporassem, se condensassem no céu lá bem alto e chovessem ininterruptamente em África e em todos os sítios do mundo onde fazem tanta falta e seriam tão bem aplicados. Pode parecer naif e corriqueiro mas quando se pede, pede-se o que se quer e como agora é Natal, é isto que eu quero: que essa massa se aplicasse na erradicação da fome, na pesquisa e investigação de vacinas para as doenças e problemas que afligem o mundo, que fosse usado para dirimir o sofrimento e aproximar a humanidade, que nesta altura e por culpa do Natal, se apercebe de como é efémera, de como é falível e de que o mais importante mesmo, é ser feliz.
Muito obrigado pela vossa atenção e já agora: Feliz Natal!
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