Desabafos de Marvão

O convite de um amigo para desabafar na Rádio Portalegre, todas as quartas, às 7.30h, 10.30h, 13.30h, 17.30h, 23.30h, levou-me também a criar um espaço, na blogosfera, onde possam ficar registados os textos da versão radiofónica. Espero que gostem e já agora, se não for pedir muito, que vos dê que pensar. Um abraço...

A minha foto
Nome:
Localização: Marvão, Alentejo, Portugal

Um rapazinho de Marvão

quarta-feira, março 07, 2007

23º Desabafo – 7 de Março de 2007


Os meus amigos que me desculpem, mas este tem mesmo de ser muito pessoal. Bem sei que os meus desabafos não têm sido outra coisa senão suspiros muito pessoais. Bem sei que provavelmente não tenho servido a causa inicial como seria suposto, mas eu alego que sou mesmo assim e mesmo que de outra maneira quisesse ser, não seria capaz. Os dedos fogem-me sempre para as teclas da verdade e não sai outra coisa senão aquela que me palpita bem no peito e me sufoca a garganta até sair. Poderia certamente fazer como os meus ilustres colegas de púlpito, que na sua análise crítica, pragmática, política e bem definida, defendem a dama até à última consequência. Eu lamento… mas não sou assim.

Geralmente os desabafos chegam-me em forma de pensamento que me acompanha ao longo da semana. Há sempre uma ideia prévia, uma notícia, uma imagem, uma recordação, um som ou uma situação da vida real que me põe a pensar. A pensar primeiro para mim e depois na maneira de pôr os outros a pensar sobre a mesma temática. Desta vez, o desabafo que era para ser já não é porque, como vos digo, por forças das circunstâncias, vi-me envolvido numa situação pessoal muito peculiar que é aquela que me faz hoje querer de facto desabafar convosco, fiéis ouvintes ou fortuitos ocasionais, que me dão o prazer de me dispensarem 6 ou 7 minutos da vossa atenção por semana.

Há quase dez anos atrás, num fatídico 5 de Outubro de 1998 que seria dia de festa e de matança de um porco para a família, recebi a notícia que a minha mãe tinha caído e se encontrava menos bem. Estando a apenas quatro quilómetros do local, voei com a máxima velocidade para à porta de sua casa, onde ainda se encontrava deitada no chão. Pensei de imediato que teria tido algum acidente vascular ou cardíaco que a tinha empurrado para aquela situação, mas apercebi-me segundos depois que estava bem e que tinha apenas escorregado. As dores eram muitas, mas o facto de mexer os dedos dos pés, levou-me a pensar que podia apenas ser uma rotura ou um deslocamento. Levada para o hospital de Portalegre, soube ao primeiro diagnóstico que tinha uma rotura no colo do fémur e que teria de ser intervencionada. A operação prolongou-se por dramáticas 5 horas, depois de muita ansiedade e muitas transfusões de sangue. A recuperação foi lenta e dolorosa mas acreditámos todos que seria para seu bem. Porém, as radiografias e a sua permanente dificuldade em andar faziam antever que algo não funcionava.

A verdade é que quem a operou falhou redondamente, confirmando a terrível fama do nosso hospital na área da ortopedia. Falhou e não falhou apenas na operação. Falhou ainda mais quando viu que não tinha tido sucesso e argumentou que era normal nos dois primeiros anos, haver sequelas daquela natureza. Dois anos que é precisamente, segundo sei, o prazo de que dispõe os utentes para reclamar legalmente. Vivêssemos nós nos Estados Unidos e já me via de charuto nos queixos a tomar longos banhos de sol na piscina da vivenda milionária, adquirida com uma ínfima parte da indemnização decretada judicialmente. Se naquele país até os fumadores morrem ricos das chorudas bateladas que as empresas tabaqueiras lhe pagam por lhes terem dado que fumar ao longo da vida! Mas não, meus amigos… é Portugal, é comer e calar! E assim passamos nos corredores e temos muitas vezes de sorrir para o carniceiro de serviço ao qual nos apetecia mais esganar mas mandam as regras da boa etiqueta que não é assim que os meninos crescidos se comportam e nós calamos subservientemente.

Passaram-se mais de sete longos anos de silencioso sofrimento, de muleta ou bengala, a arrastar-se para tentar ser feliz e depois de muita consulta, muito quilómetro, muita esperança desvanecida, lá chegou a confirmação do diagnóstico da asneira com o respectivo resgate da lista de espera para operação correctiva.

De Portalegre, fugida a sete pés, aterrou em Montemor-o-Novo num hospital bem prestigiado nestas coisas de ossos. Quando tudo resolvido e depois de debelar uma infecção numa perna apanhada no anterior internamento, lá seguiu para a tão esperada cirurgia. Ligou-me ainda na mesa das operações a dizer que a tinham que fechar. “Mas porquê?” perguntei eu incrédulo de não poder mais com tanta história. Só depois de aberta verificaram que a peça que lhe tinha sido introduzida em Portalegre necessitava uma chave específica para ser retirada e chave, nem vê-la! Nem tão pouco se sabia se haveria uma disponível em Portugal. Quando depois de encontrada, voltou à sala branca para colocar nova prótese. Nova operação, nova recuperação, novo esforço que consome e fraqueja.

Saída da cadeira de rodas e tempo depois, quando já sonhava com uma vida normal, uma dor incisiva toldou-lhe o horizonte. Fazendo o obrigatório raio-X para despiste, confirmou-se o pior. A prótese estava partida.

Voltou tudo à estaca zero. Entrada pelo hospital de Évora e as habituais desculpas do costume que a nós sinceramente, já de nada valiam.

Enterra-se o passado e aposta-se tudo no futuro. Pediu-se um esforço derradeiro e avançou-se para nova prótese que era desta, que sim, que não havia por onde falhar. Depois da duríssima operação foram quase 7 meses de repouso longe da família, muitos dias de fisioterapia, de saudade, de esforço e de dúvida, de ansiedade e muito sofrimento para nós também. Mas avançámos certos que teria de ser por aqui.

Tinha recomeçado a trabalhar há poucos dias, há um mês talvez, com o apoio comovedor de toda a comunidade escolar de Santo António das Areias, que lhe abriu as portas e o coração e a recebeu como a um filho pródigo. Tínhamos começado a desenhar agora os seus planos de futuro e a construção da casinha com que sonhou toda uma vida e onde já se via a brincar ou a jardinar com os netos.

Encontrei-a na missa, no domingo e angústia do seu olhar como só eu conheço disse-me tudo e alvoraçou-me o sistema cá por dentro. Dificilmente convencida, lá avançámos para Portalegre para a inevitável chapa, a tremer já por tudo o que era sítio.

E o pior confirmou-se.

Partiu a prótese pela segunda vez e a quinta operação, quarta no espaço de um ano era a única solução. Levámo-la nessa mesma noite para Montemor onde foi segunda-feira operada. Numa cirurgia prevista de 3 horas, foram necessárias 9, desde as 9 e meia da manhã até quase às seis da tarde, para levar a cabo os trabalhos. Nesta batalha duríssima pela vida e pela sua saúde, necessitou 7, digo 7 unidades de sangue para alimentar a réstia de vida e de coragem que a fazem seguir em frente, com uma tenacidade impressionante.

Alguém que sabe e acompanhou os trabalhos desde o início, garantiu-me que a asneira não foi só da primeira, mas repetiu-se na terceira e na quarta operação e quando me perguntam se é desta, eu faço cara de parvo e encolho os ombros porque não consigo fazer mais nada.

Disse-me esse alguém que sabe, à boca pequena, que era impossível seguir em frente com a placa e com o enxerto que lhe foi colocado da última vez.

À boca pequena porque com a classe médica ninguém pode. Contra a classe médica ninguém vai. Contra a classe médica, ninguém se safa.

Mas a verdade é que ao longo destes anos de Calvário, desta inexplicavelmente dura Via Sacra, encontrámos nessa mesma classe médica, profissionais de uma simpatia e de um rigor profissional inultrapassável. Sabemos que há muitos médicos, muitos enfermeiros, muitos profissionais, homens e mulheres do maior gabarito e tivemos a sorte de conhecer muitos deles.

Nunca se pode julgar o todo pela parte. Mas se esses profissionais sabem, confirmam, constatam que houve erros de colegas, falhas que prejudicaram as vidas de pessoas, de famílias inteiras, porque será que não os denunciam? Porque será que não tentam apurar a verdade? Porque será que não tentam repor a legalidade e a justiça quando sabe que estas foram cegas? Porque será, e esta é a grande questão, que não evitam que os mesmos erros prejudiquem pessoas indefesas que confiam e descontam para que a nossa classe médica os possa salvar? Porquê esta verdade em surdina? Porquê esta estúpida, idiota e completamente aberrante consciência de classe? Será que a consciência de uma classe vale mais que a saúde de uma pessoa?

São estes mil porquês que me atormentam, que se apoderam de mim e me consomem, que me deixam sozinho e a gritar para o vazio. A falar com dúvidas tremendas que nunca me hão-de dizer nada.

Mas digo eu que não calo para que se saiba como é, e para que ao menos não volte a acontecer a quem lá cair de surpresa.

E entretanto a Alzira luta para seguir em frente. Será que é desta, Alzira?

Deixo um abraço muito especial a todos os amigos que nos têm apoiado, aos excelentes profissionais que nos têm ajudado e a todas as almas que sofrem, que conhecemos nesses corredores fundos e que nos ensinam com a sua gratidão e entreajuda que às vezes a felicidade está mesmo aqui ao nosso alcance, quando estendemos a mão não para pedir, mas para consolar quem está inconsolável ao nosso lado.

Bem hajam!

8 Comments:

Blogger nuno mota said...

Força, Pedro !!!

4:12 da tarde  
Blogger nuno mota said...

Pedro: Sabes que tenho acompanhado bem de perto e ao longo dos anos o sofrimento da tua mãe.
Efectivamente, como tu dixes e bem, é inqualificável a falta de profissionalismo e saber que somos obrigados a suportar, com o desgaste do próprio corpo como é o caso e com riscos da própria vida, ficando nós sujeitos a que erros grosseiros nos alterem irremediávelmente o nosso dia - a -dia com todas as implicações que daí advéem.
Há muitos anos que a Famíla Sobreiro faz parte do meu grupo de amigos, daquelas pessoas que com o continuar do relacionamento, metemos no nosso rol dos mais queridos.
A tua mãe Alzira não merecia nem de perto nem de longe um sofrimento assim.
Acredito que com a força de vontade dela e a sua enorme força interior, há muito demonstrada, para ultrapassar dificuldades, conseguirá ultrapassar mais esta fase difícil.
Força,Alzira, força Família Sobreiro !!!!
Um grande abraço solidário da Família Mota ( Nuno, Catarina, Paulo, Ana e Fábio )

4:19 da tarde  
Blogger Pedro Sobreiro (Tio Sabi) said...

Bem hajam

12:46 da tarde  
Blogger Catarina said...

para a senhora que eu conheci num dia de leituras,e que disse que "todos nós podemos escrever, basta estarmos atentos ao que se passa à nossa volta",escrevo umas linhas rápidas, desejando umas ainda mais rápidas melhoras!

2:49 da tarde  
Blogger Jaime Miranda said...

Camarada, abençoadas as mães e neste particular a D. Alzira, que trouxe à vida uns filhos como tu e o teu irmão que não desfazendo, se fizeram homens inteligentes, bem parecidos e competentes para assegurar a descendencia.
A situação por que está a passar a tua mâe é uma vergonha não só para os médicos envolvidos mas também para toda a classe, que só sabe apelar á solidariedade do zé povinho quando é para reclamar melhores condições de trabalho. Não se pode duvidar que é uma profissão de muita responsabilidade e que mexe com dimensões pessoais muito delicadas. Mas, por isso mesmo, o que se esperaria é que fossem mais dedicados, mais atenciosos e mais sensíveis, o que parece só acontecer em algumas execpções, decerto necessárias para confirmar a regra.
Já não existe nenhum Doutor Machado, por esse país fora, e quem nos vai salvando são os doutores nuestros hermanos, que se fizeram à vida porque no pais deles a medicina é uma profissão que se democratizou e que as pessoas escolhem por vocação e não ambição.
No meu caso, tive recentemente uma exepriência próxima com médicos, durante a doença da minha avozinha. Tenho de reconhecer que a equipa de Cirurgia do hospital de Portalegre foi bastante atenciosa e que tentou ajudar a minha avó (e a minha mãe, que sofreu a seu lado até ao fim) com todos os recursos ao dispôr. Mas o nosso corpo não é uma máquina programável e os médicos e enfermeiros não são santos milagreiros, pelo que apesar de todos os esforços que, acreditamos, puseram em prática não foi possível retardar a partida da Maria Emília deste mundo. Falharam no que se propuseram mas foi uma falha humana e, por conseguinte, aceitável. Pelas tuas palavras, o que se está a passar com a tua mãe não é assim. É indesculpável e ,como tal, deve ser denunciado, como tu, muito bem, fizeste. Da nossa parte, resta-nos apoiar a vossa luta e fazer muita força para que a D. Alzira volte rapidamente restabelecida, com alegria, à sua casa e ao convívio dos seus . Qua a sua coragem seja uma luz para aclarar a razão daqueles que não assumem o seu dever e que o nosso carinho a ajude a aguentar o sofimento. Aquele abraço do Jaime Miranda

3:48 da tarde  
Blogger Pedro Sobreiro (Tio Sabi) said...

Vocês dão cabo de mim... Agradecido, agradecido, agradecido...

6:53 da tarde  
Blogger SnowFox said...

Como não podia deixar de ser… Aqui estou eu a deixar algumas palavras, sei que não lhe darei melhoras, mas tenho que mostrar como gosto da tua mãe.
Lembro ainda hoje o dia 12 de Junho de 1995, dia em que fomos juntas de comboio a Lisboa, divertimo-nos imenso, é um dia que jamais esquecerei… foi o nosso passaporte para o quadro da nossa escola. Desde esse dia e até hoje tenho-a no meu coração, é uma pessoa com quem consigo falar horas a fio… sem me cansar.
Quando regressou ao serviço fiquei muito contente, acho que também ela mesma precisava de estar com o pessoal da escola, tal como tu Pedro também eu fiquei triste no domingo fatídico quando a vi na missa, porque estes 11 anos e meio juntas, também serviram para a conhecer um pouco.
Não percamos a esperança e vamos rezar por ela…

Joaquina Rosa

11:38 da tarde  
Blogger Joaquim Vitorino Eusébio said...

Pedro: Acabo de tomar conhecimento do teu blog e desde já te felicito por este espaço que criaste e nos deste para compartilhar contigo. Mesmo quando estamos longe - é o meu caso, quando te escrevo a partir do Canadá.
Pelo blog soube novidades da tua mãe e, claro, fiquei chocado com os pormenores sórdidos que descreves. Para essa Mulher de coragem e grande amiga vai um grande abraço do solidariedade. A vida tem sido injusta para esta grande amiga. A esperança em dias melhores é o alibi que nos tem de nortear.
Mas não posso calar a revolta face à inoperância, à ineficácia, à falta de profissionalismo de alguns que abusivamente usam o título de médicos. A irresponsabilidade não pode continuar. Há limites para tudo e forçosamente o quadro legal terá de alterar-se em Portugal.
Hei-de voltar ao assunto.
Um grande abraço do
Joaquim Vitorino

5:19 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home