Desabafos de Marvão

O convite de um amigo para desabafar na Rádio Portalegre, todas as quartas, às 7.30h, 10.30h, 13.30h, 17.30h, 23.30h, levou-me também a criar um espaço, na blogosfera, onde possam ficar registados os textos da versão radiofónica. Espero que gostem e já agora, se não for pedir muito, que vos dê que pensar. Um abraço...

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Localização: Marvão, Alentejo, Portugal

Um rapazinho de Marvão

quarta-feira, outubro 25, 2006

4º Desabafo - 25.10.2006



O boletim meteorológico anunciava chuvas intensas e ventos fortes, cheias, derrocadas e árvores caídas… estava mesmo a pedir um domingo caseiro de volta de jornais e revistas, com um bom filme ou um disco por companhia. Ainda assim, e porque promessas a crianças não se rompem, fiz-me à estrada e desafiei o temporal, em direcção à feira, junto ao Pavilhão do Nerpor.

Neste domingo de manhã, o coração de Portalegre estava deserto e mais parecia uma cidade fantasma do Novo México, daquelas onde só os novelos de arbustos se atrevem a atravessar as avenidas poeirentas ao sabor do vento. Quase sem rastro de vida… Estaria eu noutra dimensão, numa metrópole perdida no nada, teletransportado para o futuro próximo dum planeta longínquo?

Nada disso! A resposta é bem real e encontrei-a pouco depois, ao chegar à Rotunda do Modelo, que mais parecia a segunda circular em noite de derby alfacinha, tal era o rodopio de carros. Tinham todos marchado para o mercado porque nem o mau tempo afasta as gentes desta visão campestre da loucura despesista, típica das grandes catedrais de consumo. São mesmo aos milhares os que peregrinam, todos os terceiros domingos de cada mês, rumo aos terrenos junto ao Parque de Leilões de Gado, transformados então num gigantesco free-shop, disponível e acessível a todas as bolsas. A todas, ou a algumas…

Minutos antes parei no Rossio e dirigi-me a uma máquina Multibanco, assombrosa maravilha do admirável mundo novo que em troca da habitual lambidela no cartão me devolveu o câmbio pretendido.

No regresso ao carro, já confortavelmente abastecido, quase tropecei no vulto abrigado no chão, ao canto dos arcos, junto ao supermercado. Não sei se a vergonha se o pudor, mas um dos dois desviou-me o olhar… Ainda assim ficou a imagem fotográfica que me acompanhou por segundos. Era um homem, na casa dos quarenta anos e ali naquele cantinho, sobre o mármore frio, decidiu fazer o seu quarto. Deitado num colchão ali deixado por caridade, porte atlético mas debilitado, aparentado fortes desordens mentais, roía apático um biscoito duro que caiu do saco de plástico rasgado. Pareceu-me distante, mas eu, como os outros, limitei-me a passar.

O café do outro lado da rua pareceu-me familiar e convidou-me a uma bebida quente e reconfortante. Nessa manhã fria, soube-me bem o calorzinho dentro de casa. “Café, por favor” pedi ao empregado que me olhava endorminhado do outro lado do balcão. Aproveitei o compasso de espera para olhar em redor e apreciar de novo o quadro. Na mesa do canto, junto ao vidro, quatro amigos de uma nova república da velha União Soviética conviviam em amena cavaqueira na língua-mãe, rindo e gesticulando num pequeno-almoço de reforço à base de médias Sagres e bagaços, para matar as saudades e dar força para seguir em frente. As almas restantes assistiam com distante desinteresse à Corrida do Tejo na televisão. Não resisiti e perguntei: “Está ali há muito tempo deitado?”. “Sexta-feira, quando daqui abalei, já ali estava”, sussurrou o empregado. Movido pela hipótese de debate, um sexagenário deslizou da outra ponta do balcão, aspecto impecável, cabelo alvo puxado para trás, casaco de quadrados, guarda-chuva debaixo do braço, e arrematou com ar de escárnio: “Há belas vidas…”. O funcionário voltou à carga com desdém: “não sei como, mas ele lá arranjou o colchão!”. O reforço não se fez esperar, na excitação de um tribunal marcial, e detrás dos óculos “cú-de-copo” e do bigode aprumado, um terceiro interlocutor arrematou: “Nunca tinha visto cá disto. Com os anos que tenho… Nem parece de cá.”

Se a tivesse puxado, sei que a conversa daria certamente para encher a manhã das mais grotescas e distantes banalidades, mas para mim, já chegava. Paguei, virei costas e atravessei a estrada em direcção a ele. Ao chegar, estiquei a mão e disse-lhe “Toma. Não o desperdices em tabaco. Aproveita para tomares uma coisa quente… um café ou uma sopa”. O olhar espantado mas agradecido e o sorriso desdentado foram despedida suficiente para ficarmos os dois bem. Sei que não é por aqui a salvação nem o rumo a seguir, mas ao menos sei que nos ajudou a passar o domingo, a ele e a mim.

Não sei se continua lá. Faço votos para que não. Como votos faço que da próxima vez, estejamos todos mais atentos e cooperantes. Que não os olhemos como um bicho raro, que não façamos como se nada fosse, como se não existisse vida dentro daqueles escombros. Porque seja por onde for, dê por onde der, há-de haver uma forma de reintegrar e ajudar, de conciliar e prevenir, de assegurar que não voltará a acontecer. Pelo menos aqui!

Embora não viva actualmente na cidade, embora não seja um portalegrense porta-estandarte, foi aqui que nasci e sinto, como muitos dos que vivem nos concelhos limítrofes que esta é e há-de sempre ser A minha cidade. E embora esteja mais bonita, organizada e cosmopolita, há modas que não queremos mesmo importar e esta, de ver e passar incólume por vidas estilhaçadas ao longo das ruas, deve-nos a todos envergonhar e dar que pensar.

terça-feira, outubro 17, 2006

3º Desabafo - 18.10.2006


De visita a Évora para casar um amigo, sábado passado, desconhecia ainda que acabaria durante o fim-de-semana por estar envolvido em acontecimentos que me iriam fazer sentir na pele, a mais vasta gama de sentimentos que pode experimentar o ser humano: da mais esfusiante alegria à mais profunda das tristezas.

Sim, Évora é uma cidade magnífica e o tal Templo de Diana, junto ao qual se celebrou a cerimónia nupcial, é imponente e faz-nos vibrar mas não sabendo bem porquê, dei por mim a admirá-lo com uma pontinha de inveja a toldar-me a razão. Ser isto parte do Património Mundial e eu ver o meu Marvão, o Marvão das deslumbrantes vistas donde Saramago viu o mundo inteiro, a ficar à porta… Desculpem, mas não me conformo.

Mas um casamento é sempre um momento enternecedor e chega a comover-nos o poder ser cúmplices da felicidade transbordante dos jovens nubentes. Saber que há alguém no mundo que consegue esquecer, nem que seja por momentos tudo o que há de mau, e sorrir daquela maneira magnética… Por muito marretas que sejamos, temos mesmo de acreditar no poder transcendente e contagiante do amor.

Envolvidos por esta vibrante onda de energia positiva, levitantes na fase pré-copo de água, entre um salgado e um vermout, bem vestidos e bem dispostos, somos tomados de assalto pela triste novidade que viperina e sorrateira se instalou nas mentes incrédulas. Num ápice e de um só golpe, sem deixar réstia de esperança ou fôlego, o coração tinha traído mais um jovem e prestigiado marvanense. 50 anos recém-cumpridos há dias. Respeitado e sem vícios, sempre afável e cordial, partiu como um cavalheiro, enquanto passeava pelos campos, provavelmente preparando com devoção a caçada do domingo seguinte.

Acordei para um pequeno-almoço em família seguido de passeio dominical pelos encantos eborenses. A ampla Praça do Giraldo e claro, esse inevitável lugar mágico e sempre de paragem obrigatória nas longas jornadas de viajem para férias nas terras do Al-Gharb, quando se demorava um dia inteirinho e se passava por dentro de todas as localidades: a capela dos ossos, junto à Igreja de São Francisco! Apesar de não a visitar há anos, há já muitos anos mesmo, o poder daquele lugar é de tal forma inebriante que jamais o esqueci. Estranhei o acesso ter mudado de lugar e não consegui evitar o sorriso ao ver que houve desde a minha última visita, alguém bem português que entendeu a fonte de receita e ossos, hoje, não há gente crescida que os veja ali por menos de euro e meio.

À entrada, a inscrição intimida e anuncia que a dimensão que se segue exige respeito e contemplação: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”. Poucos minutos depois de entrar e acabado de passar o arrepio da praxe, acabei por compreender então a óbvia estranheza que o insólito e macabro décor me transmitia em criança. No fundo, a razão por que carga de água, três monges do séc. XVII se lembraram de conceber este monumental portento de arquitectura penitencial, ao reunirem de uma assentada perto de 5000 estruturas ósseas, verdadeiros alicerces que serviram de roupagem terrena a outros tantos viventes, não é mais que aquela que eu ouvi tantas vezes sair em sussurro da boca do padre da aldeia, nas quartas-feiras de cinzas, enquanto fazia o sinal do cruz na testa do fiel:”lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar”.

A efémera fragilidade da vida humana. Elementar!

Não gosto de funerais e aí penso que não serei muito diferente da maioria dos ouvintes. Deixam-me nervoso e custa-me particularmente ver que muitas vezes, muitos dos que se dignam a prestar esse último adeus, tudo fazem para que a solenidade do acto seja tudo menos solene. Aproveita-se para se falar de tudo e de nada, alvitra-se o tempo, o estado do país e do futebol e às vezes chega-se ao ponto de se comentar a saúde deste ou daquele que se perfila para ser o próximo nessa inexorável caminhada face ao nada.

De regresso ao meu concelho, no domingo e em silêncio como sempre, acompanhei o cortejo fúnebre imerso nestas considerações. O silêncio doloroso reinante nos minutos derradeiros da cerimónia, vai-se tornando em murmúrio e depois em diálogo, à medida que os acompanhantes abandonam o cemitério e se aproximam da povoação.

Para trás ficam as lápides alvas, as flores artificiais e o vazio sepulcral. Junto à civilização, mergulhamos na centrifugadora existência dos nossos tempos, de escravos dos horários e das coisas físicas, das guerrilhas diárias do acordar ao deitar.

Esquecemos assim os frades, as cinzas e a voraz vertigem que no espaço de um dia, e volto ao início do meu raciocínio, nos mostra quão rápida é a viajem do dia para a noite, da luz para a treva, do tudo para o nada. É pena…

Não resisto a deixá-los com o poderoso soneto do padre António da Ascenção Teles que decora em quadro de madeira antiga, um dos pilares da dita capela dos ossos:
Aonde vais, caminhante, accelerado,
Pára… não prosigas mais avante,
Negócio não tens mais importante,
Do que este à tua vista apresentado.
Recorda quantos desta vida tem passado,
Reflecte em que terás fim similhante,
Que para meditar causa he bastante,
Terem todos os mais nisto parado.

Pondera que influído d’essa sorte
Entre negociações do mundo tantas,
Tão pouco consideras na da morte.

Porém, se os olhos aqui levantas,
Pára… porque em negociações deste porte
Quanto mais tu parares, mais adiantas.

terça-feira, outubro 10, 2006

1º Desabafo - 4 de Outubro de 2006

A notícia é do género das tão más, tão más que se chegam a tornar realidade. E a realidade, crua e dura, chegou como um soco no estômago: a direcção da multinacional americana Johnson Controls, uma das líderes mundiais na produção de componentes para automóveis, confirmou oficialmente o fecho das suas fábricas de Nelas e Portalegre, em Agosto do próximo ano, empurrando 875 trabalhadores, 225 dos quais da fábrica de Portalegre, para o desemprego.

Se bem que nos tomou a todos de surpresa, ninguém pode dizer que este era um cenário de todo imprevisível. Embora os teóricos das ciências empresariais se esforcem por nos convencer do contrário, a verdade é que as leis do mercado e os princípios gerais que regem o funcionamento das economias são conceitos relativamente simples, compreensíveis até para criancinhas acabadas de entrar para a escola. E a coisa resume-se a isto: há os senhores muito, muito ricos que vivem para lá do atlântico, que querem gastar o menos possível para fabricar os produtos que vendem, com o objectivo de ganhar cada vez mais, que se instalam num determinado país mas descobrem a dada altura que há outros países no Leste da Europa, com trabalhadores aos quais têm que pagar menos para fazer basicamente o mesmo e, sem mais, é armar a trouxa e zarpar.

Depois, é um baile de secretários de estado e ministros por um lado, dirigentes partidários e sindicalistas por outro, uns a tentarem justificar, outros a tentarem legitimar actuações e procedimentos mas a verdade, como disse em tom amargurado uma trabalhadora da fábrica de Nelas, ao tentar justificar a fraca afluência de trabalhadores no plenário com os dirigentes sindicais, a verdade, verdadinha é que os homens decidiram fechar e já está! Podem-se desenhar soluções, estratégias e caminhos a seguir, mas parece-me que para além de lutar por indemnizações o mais justas possíveis, pouco mais haverá a esperar desta gente.

A economia, como a vida, é mesmo assim e assusta a rapidez e a frieza como cenários supostamente idílicos se transformam num curto espaço de tempo, em terríveis pesadelos. Recordo-me que em dado momento, nos idos anos 80, em que o escudo era bem mais forte que a peseta, se falava num negócio de ouro na localidade da Portagem: umas bombas de gasolina! Nos cafés e nas conversas de esquina, se alguém perguntava por uma oportunidade de negócio, lá vinham à baila as bombas da Portagem que a estrada prometia, eram muitos camiões, era um local de passagem, as bombas mais próximas estavam longe e fora de rota, mil e uma razões para enriquecer, ali à mão de semear. Pois bem… os anos passaram e as bombas nunca chegaram e ainda bem para quem não investiu porque as voltas do mundo, dos governos e do mercados ajudaram a formar uma Espanha mais forte e hoje, a bomba de gasolina de sonho existe mas está do outro lado da fronteira, a rir-se de nós enquanto recebe de braços abertos as filas portuguesas em romaria de fim-de-semana para atestar. A do lado de cá, se existisse, estava como o do reclame, “a vê-los passar!”.

No caso da Johnson, todos sabíamos que não seria uma daquelas longas histórias de relação entre fábricas e famílias, estilo conto de fadas moderno em que as fábricas casam com as cidades e as regiões. A história em que o avô foi fiel de armazém, o filho que entrou pela sua mão chegou a chefiar uma fase de montagem e o neto até foi director de produção. Todos sabíamos que esta era uma história com fim à vista e o fim poderia estar tão próximo como se veio a provar.

Gostava de deixar uma palavra especial para os trabalhadores. Vivi muito de perto o drama do desemprego. Tal como muitas das vossas famílias, também a minha caiu nesse drama num volte-face do destino, à meia-noite de um 31 de Dezembro de 1989, em que se abriram as portas da Europa e se fecharam as do emprego para muitos dos habitantes da freguesia da Beirã, no meu concelho de Marvão, que trabalhavam na área das alfândegas. Sei de perto o que se sofre. Sei que o que mais dói, não é o ter que fazer e refazer contas, o ter que dizer que não aos filhos, o ter privações, o ter que aceitar a piedade dos outros, às vezes mesmo, o ter de partir. O que mais dói é o vazio que se instala lentamente dentro, o não ter que fazer, o ver as horas e os dias sempre iguais, o ter de lutar em silêncio, contras as filas e a indiferença. O duro é sentir-se inútil. E é essa a grande batalha de todos agora.

Diz o ditado que não há porta que se feche que não se abra uma janela. Há que erguer o olhar e seguir em frente, há que ter fé numa autarquia consciente e informada que está do lado dos seus munícipes, há que não desistir e procurar outras formas de triunfar.

Mas a lição da Johnson deve ser aprendida por todos nós, porque nestes tempos que correm não há eldorados, não há soluções milagrosas, não há empregos que caem do céu.

E para isso, a nossa saída estratégica tem de passar invariavelmente por empresas de pequena dimensão e não por grandes estruturas, tem de passar pela exploração consciente dos nossos recursos endógenos e não pela produção de bens que podem ser a fabricados em qualquer outra parte do mundo.

A nossa saída passa por sermos autênticos e racionais.

Que não tenhamos vergonha de copiar o que é bem feito, por quem o faz bem.

Posso-me enganar, mas parece-me o futuro não está lá fora. O futuro tem que nascer de dentro. De dentro de nós próprios.

2º Desabafo - 10 de Outubro de 2006
Enquanto vereador responsável pelo Pelouro da Educação, dou por mim a programar os prolongamentos de horários dos catraios. Para os ouvintes mais distraídos e aqueles que não tenham tido ainda a alegria de serem pais e andarem metidos nestas andanças, a coisa resume-se a isto: o Governo, que tem mais com que se preocupar, passou a bola do 1º ciclo, que para mim será sempre a escola primária, para as autarquias. Fecha-se assim os olhos a uma óbvia obrigação estatal de enturmar os petizes no mundo da escolaridade, ao mesmo tempo que se liberta de uma importante carga de trabalho e responsabilidade.

Pois bem, agora os meninos não saem às 15. Agora, depois da meia tarde e até às 17.30, têm as suas vidinhas ocupadas com prolongamentos onde, para além de actividades de carácter obrigatório como o Inglês para o 3º e 4º ano e o apoio ao estudo, existem outras matérias que os municípios entendam como enriquecedoras e adaptadas aos seus mais jovens descendentes. O dinheirito para assegurar os docentes, chega via Ministério da Educação, após realização de formal candidatura e depois são as câmaras ou outra entidade que se perfile e reúna os requisitos, a escolher o quê e como. O leque de áreas é tão diversificado que pode ir da Robótica ao Espanhol. Nós, em Marvão e por convicção, optámos pelo Inglês logo desde a 1ª classe, a Actividade Física e Desportiva, a Música, a Expressão Plástica e a Animação.

Mas a coisa não fica por aqui. Para além de tudo isto e porque os pais querem, os filhos sonham e a obra nasce, há também agora, em regime extra-curricular e depois das 18 horas: o Ballet, o Hip-hop e o Judo, a Escola de Música e o Futebol do Grupo Desportivo Arenense. Muito por onde escolher que isto de viver no interior não pode ser sinónimo de um viver inferior.

Sentado a olhar para o horário, cada actividade com sua cor, tudo programado ao milímetro para que quem queira mesmo alinhar em tudo não tenha que deixar alguma para trás, dou por mim a pensar se a coisa fará sentido.

Recordo então como era no meu tempo. E lembro com saudade como eram longos aqueles minutos antes do bater das 3, em que se escancaravam as portas da escola para nos revelar um mundo inteiro de brincadeira à nossa espera, até que se fizesse noite. Essa legião de incautos rebeldes em ponto pequeno, corria então em liberdade, a explorar um mundo que se reinventava dia-a-dia. Não havia cancho ou buraco que não conhecêssemos como a palma das nossas mãos. Era o tempo dos esconderijos em que sonhávamos com os cinco e os sete, as naves espaciais e os cóbois dos filmes da tv espanhola onde brilhava esse ser supremo chamado John Wayne, um tempo que a televisão era um luxo e não um mal necessário. Nesse horário mágico entre as 3 e as 7 ou 8 ou meia-noite até, em que nos esquecíamos de protocolos e refeições, éramos espiões e exploradores, homens da idade da pedra e indígenas da Amazónia, o Sandokan, o Arzowei ou o Tarzan, o Marco, a Heidi e o Wickie, ladrões de pêras e tangerinas, sempre de fisga no bolso e com mais uma esparrela por armar. Mas haveria alguém nesse mundo que não fosse capaz de fazer uma barraca com 3 tábuas, meia dúzia de pregos ferrugentos e um resto de chapa de zinco?

Nesse consentido espaço à rebeldia, nessa Terra-do-Nunca em que o nosso Capitão Gancho, o nosso único medo era o comboio, aprendemos o que era o companheirismo e a amizade. Tenho a sorte de conviver quase diariamente com muitos desses meus amigos de infância. Sou colega de trabalho de alguns. A vida quis assim e sinto-me afortunado por assim ser. Vivemos tanto perigo e tanta aventura, descobrimos tanto juntos que sabemos todos que por mais voltas que o mundo dê, haveremos sempre de estar lá, uns pelos outros. Porque nessa gruta do alto da Beirã fumamos convictos o primeiro cigarro, um Kentuky mal amanhado comprado pelos mais velhos na tasca da Ti Aurora; na Broca, partilhámos o tanque com vacas e bezerros, nessas tórridas tardes de Verão e esse dia não era dia se não fossemos todos às melancias. Expostos, por nossa conta, mas com uma alegria transbordante a fervilhar nos corpos franzinos.

Acredito piamente que é na infância que reside a centelha de divindade que há em todos nós. Acredito que no fundo, é o único período da nossa vida em que somos verdadeiramente livres de horários, contas e obrigações. É o momento em podemos fazer como dizem os espanhóis, lo que me der la gana. Porque a partir daí, a corrermos uns contra os outros e contra o tempo e o que ficar para trás, que feche a porta que dos fracos não reza a história.

E assim, com uma diferença de vinte e poucos anos, sigo para a escola de mão dada com o meu tesouro, a minha Leonor, sabendo que a entrego e preparo para um mundo que já nada tem a ver com o meu de então.

Serão mais cultos, mais pragmáticos, mais sofisticados, mais organizados, em suma, mais preparados.

Mas será que são mais felizes?

Será mesmo por aqui o caminho?