Desabafos de Marvão

O convite de um amigo para desabafar na Rádio Portalegre, todas as quartas, às 7.30h, 10.30h, 13.30h, 17.30h, 23.30h, levou-me também a criar um espaço, na blogosfera, onde possam ficar registados os textos da versão radiofónica. Espero que gostem e já agora, se não for pedir muito, que vos dê que pensar. Um abraço...

A minha foto
Nome:
Localização: Marvão, Alentejo, Portugal

Um rapazinho de Marvão

terça-feira, dezembro 26, 2006

13º Desabafo – 27 de Dezembro de 2006 – “Rescaldo Natalício”


Provando mais uma vez que o que o que é bom acaba depressa, lá se foi mais um Natal que como sempre, custou mais a chegar do que a abalar. De renas estacionadas na garagem do Pólo Norte, o nosso velhinho de vermelho já deve ter as barbas de molho, resfolgando na enorme poltrona junto à lareira, gozando entre os duendes o merecido descanso depois de dias tão atribulados para uma pessoa da sua idade.

Nós por cá, vivemos este curioso período que vai entre a quadra natalícia propriamente dita e a noite em que arrumamos na gaveta o ano velho e damos as boas vindos a um fresquinho, acabadinho de estrear. Meio mundo aproveita agora para gozar aquele restinho de férias que guardou no fundo do saco o ano inteiro, e os outros que supostamente deveriam estar a trabalhar, estão mas é já a ver-se de copo de champanhe na mão, dançando embalados pelas doze badaladas, pelo glamour do fogo de artifício e pela fantasia de uma noite especial em que nos sentimos todos mais blasés.

Neste espaço de tréguas e desintoxicação a que chamaria de “Advento do Ano Novo”, aproveitemos pois para recuperar os índices normais de vivência e para fazer uma análise do ano que passou. Eu, por exemplo, aproveito para deixar dois ou três pequenos desabafos sobre esta quadra que passou e que gostaria de partilhar convosco.

1. Os actuais fabricantes de brinquedos não gostam de crianças. Eu já suspeitava, mas este ano tirei completamente as dúvidas que me restavam. Antigamente, quem tinha o dom de construir brinquedos eram pessoas especiais que, tal como o Peter Pan, nunca perdiam aquela capacidade extraordinária de sonhar acordados que é tão própria das crianças. Eram pessoas divinamente dotadas que depositavam em cada peça que faziam, um amor que chegava por tabela ao feliz petiz que a recebia. Lembram-se da história do Pinóquio e do seu fabricante Gepeto, a quem o próprio chamava de pai? Dantes, os fabricantes de brinquedos eram assim. Agora, só pensam neles e no dinheiro que ganham, trabalham não para fazer os meninos e as meninas felizes, mas para engrossarem as chorudas contas bancárias e para aumentarem os impérios. Vejam se não concordam comigo: em primeiro lugar, começam por bombardear as manhãs dos nossos filhos, quase sem darmos por isso e logo que entra o Outono, com blocos maciços de publicidade que deixam os seus pequenos cérebros atordoados de desejo. A injecção de vontade que lhe espetam nos rabitos é de tal ordem, que em vez de tirar, dá uma terrível febre consumista que os deixa completamente desorientados, sem saber para onde se virar. Ao ponto de a minha me ter dito que “o Pai Natal enganou-se nas minhas prendas e não me trouxe nada daquilo que eu queria”. Quando confrontada por mim se as prendas que tinha recebido, uma a uma, não tinham sido por ela pedidas, pelo menos uma vez, respondeu-me que sim. Mas que queria também “a boneca não sei quantos, o carrinho para não sei quê, os autocolantes para colar não sei onde” e terminou a extensa lista com esta jóia: “e também não me deu muitos bonecos que eu queria e que agora não me consigo lembrar quais são”. Ai filha, tu agora não percebes, mas estás perdoada.
A principal razão que me leva a ser porta-voz desta cruzada contra esses infiéis fabricantes de brinquedos é o mistério das pilhas. Sim, a mítica questão das pilhas que só quem nunca foi pai não sabe do que vos falo. Esses infames construtores, nunca assistiram certamente à abertura, em plena noite de Natal, dos pacotes que fabricam em série mas a coisa até é fácil de explicar: os paizinhos trazem a prenda (se não houver quem se vista de Pai Natal…) e a criança destrói em fracções de segundos o frágil embrulho. Ao dar de caras com o presente, grita de alegria e abraça agradecida por ser “aquilo que sempre queria”. De seguida, vira-se para o pai e diz: “monta!”. E o pai que pode nem ser grande amante da bricolage, tem mesmo de meter mãos à obra e fazer de linha de montagem porque à mínima nega, é choro certo. Sob o olhar curioso e austero do descendente, dá voltas e voltas à caixa e às instruções, vira e revira, sua e inspecciona e quando finalmente tem tudo pronto, novo a estrear, faltam… as pilhas. As pilhas senhores! que são sempre do modelo e do tamanho que nós não temos, que nós já acabámos, que nós não sabíamos que existia. Furibundos, capazes de enforcar o Senhor Mattel ou o Senhor Famosa, temos de engolir em seco e reduzir-nos à nossa triste condição plebeia, com vontade de acompanhar os mais pequenos no seu lamento. Sei que a probabilidade de esses senhores estarem agora a ouvir-me é praticamente nula mais ainda assim, fica o registo para que saibam, estejam lá onde estiverem: para a próxima, vejam lá se metem as pilhas adequadas mesmo que o brinquedo custe mais um ou dois euros e não importa que sejam muito manhosas e aguentem apenas uma noite. Assim, sempre dá tempo para no dia seguinte irmos seja lá onde for preciso para arranjar as devidas recargas. A mim, nunca mais me enganam e no ano que vem, hei-de comprar um expositor da Duracell daqueles inteirinhos mesmo que abrase o subsídio de Natal todinho e que a minha casa tenha tanta electricidade que se torne radioactiva, ao ponto de nem precisar das luzinhas no telhado para brilhar na noite de Natal.

2. Quanto à questão ambiental, tenho que pedir desculpa mas para mim os ecologistas sempre foram uma espécie de talibans só que em vez do Maomé, têm a natureza. Acho-os sempre muito facciosos, muito redutores, muito fundamentalistas, muito controladores, muito sem razão apesar de saber que a têm toda. Não sei porquê, mas dei comigo a pensar que deve ser terrível estar casado com uma ecologista daquelas ferrenhas, sempre detrás de nós, a desligar-nos a torneira da água quando lavamos os dentes, a obrigar-nos a longos serões de conversa à luz de vela para não gastarmos electricidade, a obrigar-nos a comprar o tal carro amigo do ambiente em vez do que nós gostamos, a utilizar roupa que respeita o não sei quê, a cumprir mil e uma regras ambientais capazes de levar à loucura o militar que há em nós. Tudo isto apesar de ser um primeiros sócios da maior associação ambiental portuguesa, a Quercus, facto que se deveu mais a uma feliz coincidência do destino que me levou a privar em tempos com um dos fundadores, do que a qualquer outro fervor proteccionista. A forma ferrenha como vivem faz-me um bocadinho de impressão mas tenho notado em mim, gradualmente, um aumento do respeito por certas e determinadas medidas que a nós não nos custam quase nada e que podem ser decisivas para o futuro do planeta. Aquela conversa da terra que vamos deixar para os nossos filhos e os nossos netos, o legado para as gerações vindouras, deixa-me sempre a tremer de remorsos. Vem tudo isto a propósito dos montes de lixo colocado indiscriminadamente junto dos contentores nesta época natalícia, da oportuna transmissão na SIC do filme “O dia depois de amanhã” no qual um abrupto aquecimento global mergulha o planeta numa súbita segunda Idade do Gelo, e da nomeação de Al Gore, mais conhecido por ter sido o braço direito de Clinton, por ter sido o Presidente dos EUA que os poderosos Bush roubaram e nunca o chegou a ser de facto, como a figura internacional do ano de 2006 para inúmeras publicações de referência de todo o mundo, pela oportunidade do seu documentário “Uma verdade inconveniente” onde alerta para a necessidade de zelarmos cada vez mais e melhor pelo nosso planeta, gravemente enfermo, vítima de inúmeras atentados e do desmazelo geral. Reparei em algumas entrevistas de rua que passaram nos noticiários deste dias, nos jovens petizes que brincavam ou passeavam à beira-rio na capital, desfrutando pela primeira vez dos seus presentes, que confessaram que isso de separar o papel e o cartão, do plástico e do resto do lixo diverso era coisa de ficção científica e portanto, sem aplicação nos seus domicílios. É pena porque com um pouco de esforço de cada um, se todos nós fizermos o que está ao nosso alcance, muito pode representar para o nosso ambiente. Experimentem que vão ver que se sentem bem melhor ajudando.

3. Sem me querer armar em Professor Marcelo da província, deixo uma última nota para a programação televisiva no Natal em que se destacou de longe, a 2:, que será sempre o segundo canal, cada vez mais excelente e oportuno com belíssimos espectáculos de circo para todas as idades, grandiosos documentários, supremos espectáculos e uma rica programação bem adequada à época, brilhando como um diamante na lama sobre o lixo geral que reina nos seus congéneres, elevando-se acima de tenebrosas Floribellas, Morangos, Fugitivas, concursos manhosos de canto e dança, imediatismo e mediocridade. Que bom é às vezes ser-se diferente!
Um abraço a todos e até 2007! Que tenham um Feliz Ano Novo com tudo o que mais desejam!

terça-feira, dezembro 19, 2006

12º Desabafo – 20 de Dezembro de 2006 – “Saber agradecer”

Foto: Pôr-do-sol em Marvão, em 13 de Dezembro, captado por mim

Perdoem-me os ouvintes mas discordo completamente de quem diz que o dinheiro não traz felicidade. Discordo em absoluto porque para mim, o dinheiro pode mesmo dar muita alegria. Para além dos inúmeros bens materiais, dos últimos gritos da tecnologia ao mais banal dos bens comuns, o dinheiro permite-nos viajar, ter prazeres mirabolantes, concretizar os sonhos de quem amamos e até pode dar saúde, o mais supremo e precioso de todos os bens. Duvidam? Não o farão certamente aqueles que por falta de posses se vêm arrastados para as listas de espera e intermináveis corredores de hospitais, aqueles que por falta do vil metal, podem ouvir falar mas nunca entrar no tal programa ou clínica privada que lhes resolveria em horas o que pode levar infindáveis anos a concretizar. Com o dinheiro e os avanços da ciência e medicina, até o feio pode virar bonito com uns bonitos seios a estrear, o jeitinho no lábio, o retoque no nariz, a aspiração das gorduras abdominais ou a moldagem de uma bundinha bem ao melhor estilo Copacabana. Rio-me por dentro quando ouço a lapidar constatação “se me saísse o totoloto, nem sabia o que fazer com tanto dinheiro”. Pois comigo como consultor, era um abrir e fechar de olhos! Tanta coisa boa à nossa espera…

Não tendo pais endireinhados, nem tendo nascido numa família abastada, aprendi a dar valor ao dinheiro e sei bem o que significa não o ter. Quando construí a minha casa, com exclusividade de recurso a capitais externos, digo entidades bancárias, esforcei-me para fazer tudo pelo melhor. Tive a sorte de ter um construtor meu amigo que bastante me ajudou e me perguntava de vez em quando, “queres o material normal ou um bocadinho melhor? A gente acerta contas no fim!” Eu pensava, “casa há só uma, mais vale que seja tudo em condições para que não tenha que andar com remendos daqui a amanhã” e alinhava. Na noite da reunião final de contas, já feliz residente da nova construção, soube o total do acerto, mais que justificado em inúmeras e longas tirinhas de papel. Tanto daqui, mais um pouco dali, uns pozinhos dacolá e dois mil e muitos contos em moeda antiga que me deixaram praticamente da penúria. O pior de tudo é que havia um resto de parte para a mobília da sala de jantar com que a minha mulher sonhava há muito e até esse foi na enxurrada. Ela bem perguntava “então? Dá prá sala?” “Para a sala? Nem para uma cadeira, quanto mais…” Não fui capaz de deixar de me sentir culpado e essa ficou sempre atravessada na garganta.

Para sempre, isto é, até ao passado fim-de-semana, quando se rescreveu a história da chegada da abençoada mobília. Tem mesa maciça e comprida para que caibam todos os comensais, bem à maneira como sempre quis. No sábado, acabada de descarregar, sentei-me sozinho nela e a olhar para ela, qual anfitrião imaginário de um jantar por acontecer e dei por mim a agradecer, em silêncio. A agradecer por ter acontecido, a agradecer por ser verdade. Na verdade, dei por mim a falar sozinho, acho que dei por mim a rezar.

Numa entrevista do excelente suplemento 6ª, do Diário de Notícias, reencontro em entrevista um dos meus heróis de adolescência, um daqueles que eu segui e li sofregamente, dos que sempre acompanhei na sua meteórica carreira literária e jornalística, desde os tempos áureos do Independente, através da revista K e livros fora: o Miguel Esteves Cardoso. Mais valia que não o tivesse feito. Bastante amolgado por uma existência errática intoxicada por excessos, bastante mais pesado e perdido, parece agora a anos-luz do jovem prodígio que aprendi a admirar. De pensamento confuso e algo atabalhoado, confessa-se e redime-se em conversa mas para quem o conhece como eu, sem nunca o ter conhecido pessoalmente, está mais próximo do esquecimento do que dos tempos áureos da ribalta. Não há ninguém que resista a 80 cigarrilhas e 3 garrafas de vodka por dia. São escolhas e temos que respeitar, mas custou-me muito vê-lo assim. Como o que é brilhante nunca se deixa apagar, a páginas tantas, no meio da conversa, deixa escapar uma pérola: “a humildade absoluta é a gratidão”.

Fiquei a mastigar esta e a pensar no que me tinha acontecido com a história da mobília que a muitos se calhar nada diz mas que me parece um bom intróito para uma reflexão um pouco mais profunda: ser-se grato pelo que se tem.

O César era o nosso Pélé. Não havia em todo o concelho rapaz com tamanha força de remate. Nos torneios infantis inter-freguesias era estrela fulgurante. Rápido, ágil e veloz, fazia de nós bonecos de mesa de matraquilhos enquanto encantava os pelados com o perfume do seu futebol. “Vai longe”, comentavam os velhos. “Que pena não ter nascido na Beirã” suspirávamos nós os pequenos, sabendo que a naturalidade na nossa freguesia nos garantia o reforço ideal para toda a vida. Ia longe… mas não foi. Numa noite maldita, haveria de o gelo ou a estrada ou sabe-se lá o quê, de o empurrar para a cadeira motorizada onde ainda hoje vive. Contagia com a sua simpatia e boa disposição quando avista um velho e a conversa cai sempre para o nosso glorioso, não é César?

No sábado reencontrei o Henrique. Embora nunca tenha pertencido à minha lista de amigos íntimos, sempre simpatizei com ele. Sendo uns anos mais velho e autor de proezas míticas e de diabruras diversas no ciclo de Castelo de Vide, sempre despertou em mim uma empatia natural. De curso terminado e carreira promissora, haveria de num fatídico acidente, numa manhã de casamento de amigos, ser atirado para uma cadeira de rodas, num calvário interminável, ao qual resiste com enorme tenacidade. Correndo dentro de si para ir vivendo.

O Zé Manel era bem mais velho mas também forte elemento da família benfiquista, porque é inevitável: quem gosta de futebol e ama o Benfica, tem sempre tema de conversa. O Zé Manel fez carreira na tropa. Era do tempo em que a peluda era obrigatória, havia esperança nessa carreira e ele nela acreditou durante muitos anos até que uma remodelação o enviou directamente para o olho da rua. Cá fora, sem ser capaz de ficar parado, adaptou-se ao mercado e encaixou-se numa empresa de sucesso do ramo das desinfecções, onde se esforçava para ser feliz. Gostava muito do seu porto e do seu Marlboro. Nesse aspecto, era um apreciador refinado. As fortes dores de cabeça foram mau prenúncio e nem as operações a esse pretenso aneurisma o safaram da sorte pior que lhe saíu ao caminho. A doença levou-o em meses. Lembro a última conversa na rua e da esperança das suas palavras. Ainda guardo o último e-mail que me enviou, sempre num estilo bem disposto. Dizia que mos enviava para desanuviar da pressão da câmara.

O João Paulo também foi militar. Não tinha grande patente mas o amor por aquela vida saia-lhe por todos os poros. Em noites de rampolia nas festas da aldeia, não havia serão em que não nos metesse todos a marchar, para galhofa geral. Sempre bem disposto, era o número um do comboio da Beira-Baixa, quando este apinhadinho, nas noites de domingo, nos apanhava em Abrantes e descia até Lisboa cheio de magalas, trabalhadores e estudantes como eu. Foi lá que o vi brilhar, a abrir as minis nos vidros com destreza que a todos deixava boquiabertos. Sempre de anedota pronta e piada fresca, era a alma daquele comboio. Quem não conhecia o Cabo Pereira não era deste mundo! Não se tendo adaptado ao mundo cá de fora, tinha agora uma hortita bem cuidada onde se entretinha e da qual ofertava os seus amigos com belas couve s e melhores alfaces. Uma meningite súbita atirou-o há dias para uma cama do hospital onde ainda hoje luta, frágil. O mau diagnóstico feito no nosso hospital distrital que o encaminhou para a psiquiatria, certamente nada ajudou mas também de nada ajuda agora olhar para trás.

Também o meu querido Bernardo, o meu velharasco, luta hoje com todas as suas forças e com uma fé que a todos anima e comove para levar em frente a sua saúde, o seu negócio e sobretudo a sua família e o seu filhote. Hás-de conseguir se Deus quiser.

E daí vem a história de gratidão, quando metemos bem fundo a mão na consciência e pensamos em tantas noites, tantas situações, tantos momentos em que em vez de eles, podíamos ser nós os protagonistas. Porque foram eles e não outros, haveremos de saber um dia, porque eu, como bom português, acredito no destino e num plano qualquer global que nos rege. Muitas das vezes, há que deixar andar, não nos restando mais que ir vivendo cada dia de cada vez, agradecidos e reconhecidos pela oportunidade única de cá estarmos.

terça-feira, dezembro 12, 2006

11º Desabafo - 13 de Dezembro de 2006 – É Natal…


Já que tem mesmo de ser e antes que seja mais difícil, antes que o tempo avance e nos apanhe a todos já bem imbuídos desse espírito que agora todos falam: cá vai a crónica do Natal.

Para mim, nenhuma outra altura do ano personifica tão bem a palavra agridoce, aquela que ao mesmo tempo tem um travo amargo e adocicado, a que é capaz de encerrar em si o veneno e o seu miraculoso antídoto.

O Natal roubaram-mo quando tinha apenas sete anos e um trágico e infeliz golpe do destino se aproveitou para levar a vida de um tio, com quem convivia diariamente desde sempre, no preciso dia em que se comemorava o nascimento do menino. Curiosamente chamava-se Lázaro, mas este, ao contrário do seu homónimo no relato bíblico, jamais voltou pelo seu pé ao mundo dos vivos. Eu sei que muitos de nós cometemos vezes de mais o erro de considerar que as crianças não percebem, não prestam atenção, não captam aquilo que por vezes lhe queremos esconder. Pois esse é o meu bom exemplo do contrário. Apesar de ter então tão poucos anos, e apesar ainda de já tantos terem passado, sei que consigo ainda hoje (sem recurso a qualquer tipo de transe ou manigância esotérica) reconstituir quase ao detalhe, a força demolidora do desnorte e da dor que se seguiu à notícia que chegou por telefone, minutos antes de partirmos para mais uma visita no então Sanatório de Portalegre. Lembro-me dos rostos incrédulos, do choro, da desorientação e de mim, perdido no meio de todo aquele corredor de aflição, olhando para todos à procura de um refúgio, de um porto seguro onde me pudesse abrigar dessa violenta tempestade de afectos que eu nunca antes tinha experimentado. Na noite anterior, já em silêncio e de televisão desligada propositadamente por respeito à fragilidade da situação, escondi-me do mundo num livro de detectives e mistérios chamado “Fantasmas da meia-noite à uma”. Nunca mais o vi.

A partir daí, o Natal dissipou-se, esfumou-se, passou a ser coisa dos outros. E eu, que gostava tanto de subir às rochas para lhe roubar o musgo ainda húmido do orvalho gelado das madrugadas frias de Dezembro; eu que contava os dias para acompanhar o meu pai nessas expedições mato adentro, de machadinha na mão, em busca do pinheiro perfeito; eu que não podia esperar mais pelo dia em que finalmente resgatávamos da despensa a caixa velha de papelão onde hibernavam as figuras do presépio; eu que tanto me divertia a inventar rios das pratas velhas dos chocolates; eu que sabia tão bem como colocar estrategicamente o pastor que ficara maneta num acidente dum Natal anterior, de forma a não se ver a falta da mãozita de loiça… eu, de repente… fiquei sem Natal.

Mas nunca mais me saiu de vista.

Reconquistei-o já depois de casar, na casita de Marvão, quando fizemos pela primeira vez a NOSSA árvore de Natal e a ficamos a admirar, agarradinhos, emocionados no escuro da noite, a ver as luzinhas todas a dançar à nossa volta, com um “jingle bells” de instrumental manhoso a sair titubeante da caixinha de música da loja dos 300 (nessa altura ainda não havia a dos chineses!).

Com a chegada da filhota, o Natal potenciou-se ao expoente máximo e atingiu a sua plenitude mágica. Cresceu e ficou imponente… Iluminou-se e chega agora a todo o mundo como nos reclames da Coca-Cola.

O Natal é a festa da família. No Natal juntamo-nos todos à mesma mesa, comemos demais, bebemos a mais, falamos muito a mais e isso é bom. No Natal fazemos loucuras. No Natal, o país pára, os políticos dão tréguas aos seus pares, os centros comerciais enchem-se e as carteiras esvaziam-se. No Natal, os talões dos multibancos e os saldos dos cartões de crédito não desaparecem mas trazem sempre um sinal de menos antes dos números. Chamem-me o que quiserem, mas eu acredito no Natal. Sim, eu sei, mas acredito! Pode ser dos filmes, pode ser uma banha da cobra qualquer que me venderam mas eu comprei e gosto dela. Há a tal coisa no ar, as caras parecem diferentes, as pessoas ficam mais amigas. No Natal há as azevias, os bolos-reis, as figuritas espanholas de maçapão, o torrão de chocolate e Alicante, as lareiras, as meias nas chaminés, a roupa nova e os perfumes, a alegria louca das crianças em luta com os embrulhos coloridos à procura do seu recheio, muitos doces, o tal concerto do Plácido Domingo, do Carreras e do Pavarotti (e não, não é o burro da Júlio Pinheiro, é o outro, o italiano, o gordito de barbas) pela milésima vez na televisão. No Natal revemos os filmes, os discos e as músicas de Natal que revisitamos com gosto todos os anos e que já fazem parte de nós. Neste Natal, eu vi o brilho de milhares de luzes da árvore que se diz mais alta da Europa, no reflexo dos olhos encantados da minha filha. No Natal vamos à missa do galo dar um beijinho na perninha do menino Jesus e aquecemo-nos no lume junto à porta da Igreja, antes de virmos para casa quentinhos por dentro e por fora. Junto a esse lume, cujos madeiros antes eram recolhidos por novos e velhos em camionetas emprestadas e hoje são apanhados pelos funcionários das Juntas de Freguesia, juntam-se depois os jovens solteiros madrugada dentro, num convívio que já é tradição, e assam chouriços e cacholeiras regadas com vinho e outras mistelas até ao romper de aurora. No outro dia, horas depois, à mesa do almoço do dia de Natal, esses jovens parecem zombies acabadinhos de desenterrar, enjoados e com grandes olheiras, mas os outros adultos não se zangam com eles porque é Natal. No Natal somos todos pessoas melhores porque queremos ser pessoas melhores e prontos, já está!

Mas se o Natal é uma festa de família, no Natal lembramos também aqueles que não a têm, aqueles que não têm Natal porque não podem. Os que trabalham nessa noite, os que não têm dinheiro para o ter, os que sofrem, os que estão doentes, os que vivem nas ruas que os outros pisam apenas, os que são marginalizados, aqueles que não usam isso do Natal, os que estão vacinados contra o Natal, aqueles para quem o dia 25 de Dezembro em nada difere do 25 de Março ou do 25 de Agosto. É um 25 igual a tantos outros. Para esses o Natal não existe. No Natal, lembramos aqueles a quem nunca mais vamos poder ver neste mundo. Lembramos aqueles que nunca mais vamos poder abraçar, beijar, cheirar, tocar ou dizer: amo-te tanto. No Natal apercebemo-nos que há muita coisa que nos falta, que somos seres imperfeitos, que a felicidade é intangível e que no fundo, a nossa grande missão não é viver… é sobreviver.

É por isso que o Natal é um pau de dois bicos. É por isso que temos de desconfiar só um bocadinho dele. O Natal é uma moeda: tem duas caras.

Para mim, a verdade do Natal está naquela história tão linda e tantas vezes contada do carpinteiro da Nazaré, província da Galileia, hoje norte da Palestina, da sua mulher e do seu rebento que segundo as sagradas escrituras, nasceu pobrezinho numa gruta fria onde só o bafo dos animais o podia aquecer, para nos salvar. Sendo ele a figura mais importante da história, aquele que marcou para sempre uma viragem completa no curso dos tempos vindouros, sendo o próprio filho de Deus e o Salvador, poderia ter à sua mercê palácios e terras, as maiores mordomias e riquezas que o mundo tinha para dar. Preferiu antes dar uma tremenda lição de humanismo e humildade, ao escolher entrar no mundo como o mais comum dos comuns dos mortais. As voltas que o nosso mundo dá: hoje, o Vaticano, a sede da Igreja Apostólica Romana, é um estado independente cuja economia é baseada na captação de donativos das comunidades eclesiais pertencentes à Igreja no mundo inteiro; não havendo outro lugar à superfície da terra com tanto valor artístico e intelectual concentrado como o Arquivo Secreto do Vaticano, a Biblioteca Apostólica Vaticana, e os acervos de arte (pintura, escultura e arte sacra) das igrejas romanas. Só o palácio onde reside o
Papa tem cinco mil quartos, duzentas salas de espera, vinte e dois pátios, cem gabinetes de leitura, trezentas casas de banho e dezenas de outras dependências destinadas a recepções diplomáticas. Com isto digo tudo e tudo o que demais dissesse seria demais.

Como é Natal e no Natal a gente pede o que quer, o que eu gostava era que o dinheiro, o ouro e demais valores incalculáveis que dormem nesses cofres de Roma, fizessem como a água no seu ciclo e se evaporassem, se condensassem no céu lá bem alto e chovessem ininterruptamente em África e em todos os sítios do mundo onde fazem tanta falta e seriam tão bem aplicados. Pode parecer naif e corriqueiro mas quando se pede, pede-se o que se quer e como agora é Natal, é isto que eu quero: que essa massa se aplicasse na erradicação da fome, na pesquisa e investigação de vacinas para as doenças e problemas que afligem o mundo, que fosse usado para dirimir o sofrimento e aproximar a humanidade, que nesta altura e por culpa do Natal, se apercebe de como é efémera, de como é falível e de que o mais importante mesmo, é ser feliz.

Muito obrigado pela vossa atenção e já agora: Feliz Natal!

quarta-feira, dezembro 06, 2006

10º Desabafo – 6 de Dezembro de 2006 – Fracções do interior


Pois é, meus amigos… por mais que nos custe, temos mesmo de nos render à evidência e reconhecer que para os nossos governantes já não somos o Chico ou o Manel, o Asdrúbal ou a Delfina; para os nossos governantes somos… números e daí não passaremos.

Para eles somos tendências, colunas, linhas e flutuações num mar imenso de estatísticas. Vimos assim a nossa errática existência reduzida à condição de algarismo. Esvaziados de alma, memória e autonomia, corremos o risco de um momento para o outro nos transformarmos num dígito e nada mais.

Os senhores bem nos explicam, gesticulam e argumentam que contra factos não há argumentos. Contra os números, nada a fazer. Os números nunca mentem.

Convencidos de que esta lógica aritmética é o caminho para a salvação, certos de que os automatismos serão a chave do sucesso, esquecem-se de tudo o resto, esquecem-se do mais importante, daquilo que nos faz tão diferentes de tudo resto, de tudo o que a terra carrega com custo à sua superfície.

Assisto assim atónito ao desmembramento de estruturas que aprendi desde sempre a considerar para toda a vida. Enfeitiçados pelo fascínio dos números, os governantes matam a pouco e pouco o interior e com ele o país. Caminhando como sonâmbulos para o abismo, quais ratitos detrás do flautista de Hammelin, embevecidos pela magia desta álgebra maléfica alegam que o que não rende, não justifica e o que não justifica, fecha.

Em vez de corrigir simetrias, de dar incentivos, de fomentar o repovoamento, chamemos-lhe assim, das terras do interior, assistem impávidos e serenos a esta absurda migração que há-de matar de enfarto as já mais que enfartadas metrópoles lusitanas.

Em vez de planear, repensar, distribuir o tecido humano pelo nosso território de uma forma equilibrada e equitativa, lavam as mãos como Pilatos perante a multidão, assobiam e olham para o lado, fingem que não nos ouvem, que não nos vêem, que não existimos. Os números às vezes não falam. Às vezes não dizem nada.

E assim está Portugal: tombado, caído para o litoral norte, litoral centro, litoral sul, como se nada mais houvesse que o mar, como o alterofilista do filme que só exercitava a parte direita do corpo. Disforme. Assim está o nosso país, que qualquer dia de tão debruçado, há-de cair borda fora e deixar-se levar pelas correntes profundas, oceano adentro, para desaparecer para sempre nas fossas abissais.

Deveriam aprender com os colonos idos da velha Europa, de há dois séculos atrás que na urgência de povoar as terras áridas do novo Continente, deram propriedades e ouro e demais regalias nunca antes vistas, para motivar e empurrar os recém chegados para esses territórios inóspitos defendidos até à morte pelos peles-vermelhas autóctones.

Esquecem-se as terras de dentro e deixa-se o flanco exposto à cobiça castelhana. Fossem outros os tempos e era vê-los entrar a toda a força, para tomar o que os nossos desperdiçaram aos abutres.
Bem sei que durante o século passado, assistimos a essa migração quase óbvia das classes desfavorecidas do interior em busca do sonho da cidade, onde as mordomias do mundo moderno estavam mesmo à mão de semear. Num país pobre, analfabeto, cerceado pelo regime, com uma ruralidade agreste a fervilhar nas entranhas, o sonho da urbe era simultaneamente a esperança e a redenção. Compreende-se. O que não percebo é esta migração massiva actual para aquilo que ninguém quer.

E acaba por ser um contrasenso. Quem não está lá está deserto de para lá ir. Quem lá está não vê a hora de sair quanto antes. Porque não podem. As filas intermináveis, a pressão do dia-a-dia, o viver incaracterístico, a poluição, a insegurança, tudo o que é mau e incomoda. Mas vão e ficam. E no meu interior, é vê-los partir de armas e bagagens e qualquer dia, nada restará senão aquilo que existia antes do homem chegar.

Fecham as escolas. Não há meninos. O senhor da Associação de pais queixa-se que cada sala merece um professor. É o desejável. Concordo. O representante do Governo é que não. Porquê? Se o número de alunos não é suficiente, o professor tem de dar para mais de uma turma. Estica-se! A lógica do número!

O posto da GNR deixa de estar aberto de dia e de noite, os militares concentram-se num único posto na sede de concelho. Mas porquê se não era assim? Porque o número de habitantes não justifica tanto militar de vigia. Assim, os que há, circulam no jipe e o serviço acaba por ser o mesmo. A lógica? Do número!

E porque razão há-de o médico espanhol que mora aqui ao lado, que já está ambientado com a população, que já está integrado na comunidade, ter de se ir embora para longe, para um concelho mais longínquo quando tudo parecia correr tão bem? Não sei ao certo, mas desconfio que a lógica do número há-de estar por detrás.

E perto está o dia em que os comboios de passageiros deixarão de circular no Ramal de Cáceres. Mas como, meu Deus? se ainda há bem poucos anos, me lembro de ver aquela gare que mais parecia um terminal de aeroporto de uma capital qualquer, a transbordar de turistas de todas as cores, credos e tamanhos, a saírem aos magotes do TERE em direcção à Alfândega. Como? É simples, o número de passageiros não justifica. O dinheiro não compensa. O governo, via REFER, fecha.

O exemplo último e acabado desta desacreditação, desta derrota moral, deste reconhecer que não há nada a fazer, tive-o recentemente nos Correios. Quando era miúdo, habituei-me a respeitar aquela instituição. Quando se entrava no edifício velho detrás da estação, o cheiro do papel, da tinta fresca dos carimbos e o imponente balcão de madeira escura mais alto que eu, mantinham o devido respeito. Ali naquela casa, penteadinho, caladinho e direitinho. Grande conquista aquela a de chegar a ser amigo do funcionário, na altura o Sr. Salpico, com quem permutava religiosamente os livros de banda desenhada do Astérix e do Lucky Luke. Era amigo e eu fazia gala disso. Ali o negócio era sério, mandavam-se as cartas para todo o lado, pagavam-se as reformas, saldavam-se as contas, fazia-se de tudo um pouco do que era importante. Os carteiros tinham bonés e grandes malas de cabedal cheias de folhas carregadas de sentimentos, saudades e mil e uma coisas. O que faziam, faziam bem e acima de tudo, a tempo e horas.

Hoje, os correios da minha terra estão amputados. Fugiram das casas onde viviam e refugiaram-se nas Juntas de Freguesia. Quem lá trabalha não é o funcionário de toda a vida mas sim alguém que está lá hoje e pode muito bem não estar amanhã. Os carteiros que andam nas ruas são os de sempre, mas andam meio atordoados com esta nova política da sua empresa e não sabem bem o que há-de ser deles. Os Correios estão feridos de morte. Na semana passada, a minha Leonor não parava com a excitação do quinto aniversário que se aproximava a passos largos. Perdida na azáfama da distribuição dos convites, lembrou-se de enviar um à primita Maria que vive em Portalegre, cumprindo a tradição romanesca do envio via CTT. A mãe, confiante na eficiência de outros tempos, não jogou pelo seguro do correio azul. Passou-se a segunda, a terça, a quarta, a quinta, a sexta e se não fosse o telefone, a pobre tinha mesmo perdido a festa. A mais pequena, gritava do alto dos rebeldes 3 anitos, que a culpa foi do carteiro. Pois é, quem dá a cara é que paga, mesmo quando não tem a culpa. A este episódio teríamos de juntar as cartas que demoram semanas a chegar a um destino que está quilómetros aqui ao lado. E a nível nacional é ver as notícias de pilhas e pilhas de correspondência a apodrecer em contentores, vítima da insensatez da política da administração. Estes são bons para ir buscar a morte!

Hão-de ser os números a matar as carreiras da Rodoviária.
Hão-de ser os números a matar as sucursais das seguradoras.
Hão-de ser os números a matar as agências bancárias.
Não há aqui pessoas que justifiquem e a maldita injecção de gente nunca mais há-de chegar.

Pois eu ousei desafiar está lógica da batata e oxalá que como eu muitos. Eu orgulho-me de me ter borrifado para a cidade grande e de ter saltado sem rede para a minha terra. Que se amole a carreira, o ordenado mais alto, a promoção tão desejada. Eu fui, vi e voltei para os meus e para onde me sinto verdadeiramente bem. Fiz como os elefantes que andam quilómetros savana dentro para descansarem naquele lugar único que é o seu.

Ó muito eu me engano ou ainda há-de vir o dia em que teremos todos de nos armar em pequenos Viriatos e fazer algo mais para inverter esta obstinada tendência de desertificação. Parece-me que a coisa só se resolverá à boa maneira portuguesa, de cacete e forquilha na mão. Cá estaremos para ver.