As Meninas do Gás: Cris, Hernâni, Ramos, Bonito, Sobreiro, Coelho, Pousadas, Anselmo e Cláudia
Ainda a propósito do Carnaval. Confesso que não sou, nem nunca fui grande folião. Esta coisa da malta andar mascarada no meio da rua aos pulos e aos gritos, armados em matrafonas, no alto de reboques, a vociferar e atirar fruta podre e caramelos, a rebentar estalinhos e bombas de mau-cheiro, soava-me a coisa de refundidos. Eu que sou naturalmente uma pessoa extrovertida e Graças a Deus bem disposta, que nunca digo não a uma boa brincadeira, que gosto naturalmente de rir e que defendo afincadamente que fazer rir alguém, ver alguém feliz, fazer alguém feliz é a coisa mais fantástica do mundo, não era grande apreciador do Carnaval.
A memória aqui falha-me e a compreensão era na idade muito pouca, mas das primeiras vezes que me meteram nestas andanças ainda praticamente não tinha conhecimento. Reconheci-me na fotografia amarelada pelo tempo, num fato de sevilhana cor-de-rosa e de carita pintada a rigor, no Algarve, com uns quatro ou cinco anitos. Sorridente, é claro, mas inconsciente da tremenda maldade a que estava sujeito. Não fosse eu um indivíduo com ideias bem definidas e era até capaz de me extraviar. Livra! Pois a ideia dos Carnavais passados perde-se na bruma de outros tempos mas está muito associada a Castelo de Vide e à Carreira de Cima para onde era arrastado pela mão dos pais. Para ser sincero, lembro-me de pouco mas de uma grande confusão, de mascarados muito mal “enjorcados”, dos carrocéis e do algodão doce, das farturas e dos brinquedos nesta ou naquela barraca, do frio e da vontade de zarpar dali para fora quanto antes. Ah! e uma vez levei com um ovo disparado por um tractor qualquer mesmo em cheio no meio da testa. Sim, é capaz de ter sido por aí. Nunca fui fã daquela história.
Com a adolescência a coisa melhorou e ganhou outra graciosidade nas noites infinitas no D. Pedro V, discotecazinha mítica apinhada onde a gente era tanta que até as paredes suavam. Aí sim, ao som do Poucochinho, com amigos de longa data, alguns deles já desaparecidos (que aqui saúdo com muita saudade), dançámos noite fora e até amanhecer mas também se diga de passagem que era mais a folia que o Carnaval porque ali o calor era tanto que não havia quem aguentasse a fatiota.
Pois o Carnaval passou por mim e acho que deixámos de ligar um ao outro até ao ano passado.
Depois de assumir funções autárquicas e na triste constatação de que nada se fazia na minha terra para comemorar a data, de tanto ver as crianças e os mascarados a marcharem sozinhos a par e passo pelas ruas, de ver as gentes abalar para outros Carnavais que de não os satisfazerem os remetiam à procedência a toda a velocidade, decidi meter mãos à obra e com a ajuda de todos, digo todos mesmo, começámos a reinventar uma tradição perdida numa pequena localidade da zona e fizemos um Carnaval pequenino, de produção caseira e para consumo doméstico que acabou por resultar muito bem. Neste ano, sentámos as partes interessados, injectámos-lhe vivacidade e energia, e creio que a coisa primeiro implodiu para explodir de seguida em bailes e desfiles de mil cores que animaram toda a população e foi muito giro de se ver.
Foram 5 dias da mais pura folia, passados numa diversão que contagiou toda a comunidade de dia e de noite. Com a ajuda de muitos amigos, esta coisa da subversão carnavalesca começou a crescer em mim e quando dei por ela estava mais que imbuído pelo seu espírito se é que de facto existe. Sim, reconheço que pelo prazer de estarmos juntos, de inventarmos e confeccionarmos fatos e adereços, de nos expormos e surpreendermos, sentimos uma mágica excitação que nos fez superar e a mim, me fez também mergulhar nas suas raízes.
Existem sob a génese do Carnaval as mais diversas teorias que o relacionam com adorações realizadas no Egipto Antigo ou com os bacanais romanos embora seja consensual que a sua essência reside no "adeus à carne", no carne levare que esteve na origem do termo que hoje utilizamos. Começando logo no Dia de Reis e prolongando-se até à “Quarta-Feira de Cinzas”, primeiro dia da Quaresma no calendário cristão ocidental, que ocorre quarenta dias antes da Páscoa (sem contar os domingos), o Carnaval é o último grito de alegria, de festejos profanos antes do recolhimento pascal. O povo imortalizou este último morteiro com a celebre expressão “é Carnaval, ninguém leva a mal” porque no Carnaval tudo, a todos é permitido e este é o momento certo para extravasarmos defeitos e desesperos, desilusões e aspirações, para nos libertarmos dessa mordaça social, dessa mortalha pública em que nos vamos envolvendo ao longo das nossas vidas.
No Carnaval borrifamo-nos para status e posições, esquecemos a etiqueta e as boas maneiras e desde que não se magoe nem se ofenda directamente ninguém, podemos até interpretá-lo como a trégua em que somos verdadeiramente livres. Bem sei que assim é em teoria, como vi que do alto dos reboques se vê muita cabecinha pequenina a dizer que não, muito risinho cínico a olhar de soslaio e a cobrar em peso de ouro, muito chacal que sob o manto cobarde do anonimato esfrega as mãos sujas de consolo, mas também sei que a vida só merece ser vivida quando é vivida com paixão e desde que tenhamos a consciência tranquila e a convicção profunda de que estamos certos, bem podemos escavacar à pedrada esses telhados de vidro que todos sabemos que temos.
No Carnaval podemos ser e eu fui muito feliz. Desafiando o estabelecido, quebrando a normalidade, despertando nos outros a centelha de arrojo e irreverência que dá sabor aos nossos dias, diverti-me e hei-de estar-lhe sempre grato por isso. Nestas coisas, temos mesmo de dar o corpo ao manifesto!
Num jantar de confraternização dos meus camaradas de máscaras, alguém se lembrou de no dia seguinte, quarta-feira de cinzas, proceder ao “enterro da sardinha” e como convém nestas questões, se um diz “mata”, os outros respondem quase em uníssono “esfola”. Foi uma manhã dura de diligências para reunir todo o material, mas no final e como seria de esperar, tudo de compôs: do mais puro bricolage nasceu o falecido e respectivo caixão e não faltaram a magnífica carreta, um sacerdote de “faz-de-conta” em avançado estado de euforia etílica e as viúvas e amigos para carpir o defunto folião.
Saídos à rua na primeira hora da noite, foi delícia impagável ver tanta gente esconder-se detrás das portadas ao avistar o cortejo porque mesmo a brincar, a coisa mete respeito e o portuguesito tem medo. Tem medo de subir para não despertar invejas, tem medo de celebrar vitórias para que não lhe desejem a queda, tem medo de quebrar tabus e de ir contra o estabelecido e é por isso que eu admiro tanto o nosso Mourinho quando avança destemido de peito cheio e sem armadura em direcção às legiões de jornalistas. Se o Carnaval é a última luz antes da escuridão, a última festa antes do anoitecer quaresmal, o enterro da sardinha, do bacalhau, ou daquilo que lhe quiserem chamar é, no fundo, a grande vitória deste período e a verdadeira essência da festa: o termos a capacidade de, enquanto humanos, brincar com a nossa fragilidade, a nossa impotência, a nossa insignificância face à imensidão do Universo. O enterro do Carnaval somos nós a rirmo-nos de nós próprios e da nossa condição porque se extremarmos a questão e levarmos ao ponto mais profundo, se filosofarmos até à exaustão e pensarmos “mas afinal que raio andamos aqui a fazer”, não nos restará certamente outra coisa senão o riso.
Não sei se por ironia do destino ou outra qualquer razão mais transcendental, acabei por reencontrar escassos dias depois, um companheiro de iniciativa e amigo de toda a vida num enterro de um familiar seu muito próximo. Onde outrora houve riso havia agora dor mas nem por isso e apesar de ser bizarro, achei que estivemos alguma vez a pisar a linha vermelha que nos metem à frente à nascença. No fundo o riso, é a única arma que nos resta no meio de tanto infortúnio e tanta adversidade. Se não rir, que outra coisa fazer perante as desgraças que devastam a nossa existência?
Há dias, num viajem à capital para ver o glorioso brilhar em palcos europeus, parámos nas inevitáveis roulotes da sandes do courato sitiadas nas imediações do estádio e ali, entre uma bifana e uma imperial, falando dos antigamentes, o meu sogro, sem se aperceber disso, deu-me uma lição elementar de esperança ao recordar uma súbita paragem cardio-respiratória que quase o “arrumou” quando ainda era bem jovem. Estando entre nós duas das mãos sábias que o haveriam de devolver à vida quando já estava no Apeadeiro do outro lado, comentou-se o trágico episódio e os momentos arrepiantes de angustiante espera que se seguiram. Com a desarmante bonomia e boa disposição que lhe é característica, o João Manuel arrematou a cena com um fantástico “se morrer é assim, não custa mesmo nada! É só fechar os olhos e já está”. “Nem frio? Nem fogo? Nem anjinhas semi-desnudas a tocar harpa? Nem diabinhos de tridente?”, perguntei eu. “Nada!”respondeu ele.
E bem, meus amigos, se assim é, se no fim se fecha os olhitos e “já está” como ele diz, que nos deixem ao menos divertir-nos enquanto cá andamos porque como diz o povo “a vida são 2 dias e o Carnaval… 3!”.
Já estou deserto do que há-de vir para o ano!